Um Jeito de Viver
Um
Jeito de Viver
“É
peculiar e educada a forma como essa minha amiga de idade na casa dos
setenta se dirige às pessoas,” disse Augusto, um amigo de muitos
anos, que nos últimos tempos passou a ser mais frequente e próximo:
ela diz, quando inquirida, que seu modo de tratar as pessoas com esse
jeito delicado, “deve ter vindo do berço”, pois ninguém lhe
ensinara esses bons modos; mesmo seus pais. Dona Abigail, como é
conhecida, é alta, magra, alva, cabelos brancos como a cal, sem
tintura, é viúva e bonita. Enviuvara com menos de 60 anos, poderia
até ter voltado a se casar, mas não se interessou, apesar de alguns
pretendentes, “inclusive eu”, diz Augusto, também viúvo, em
tom de brincadeira (embora por trás de toda brincadeira deva haver
vestígios de verdade); “alguns interessantes”, como ela diz
vaidosa. Leva uma vida quase monástica; sai pouco de casa. Os
vestidos sempre lhe caem muito bem, realçando seu corpo ainda
desenhado por curvas; não era mais aquele corpo em forma de
ampulheta, de quando era jovem, de quando ia às missas aos domingos,
naquela vila do sertão, que fazia os homens girar a cabeça
desejosos e que causava inveja e ciúmes às outras mulheres,
principalmente às mulheres casadas que flagravam seus maridos com
olhares “oblíquos e dissimulados”, como era o olhar de Capitu.
“E aquele par de braços!” Admira-se Augusto. “Poderiam até
sobrepor em beleza os braços de D. Severina, em que pese a idade,
que encantavam o adolescente Inácio, descritos por Machado de Assis
em “Uns Braços.”
Não
faz muito esforço para manter a silhueta; segue algumas
recomendações médicas, faz caminhadas, mas a quantidade de comida
não carece ser controlada, pois sempre comeu pouco. Aqui, ali, um
doce mamão ou uma fatia de bolo de leite, feitos por ela. Lera que
as francesas são magras, apesar dos vinhos e dos queijos; “é que
elas andam muito e comem pouco,” diz. Dona Abigail tem um estilo de
vida semelhante, com exceção da sofisticação das francesas quanto
ao consumo de vinhos e de queijos. Quando muito ela bebe os vinhos
suaves e os queijos de manteiga ou de coalho, produzidos na região.
Não
tivera educação escolar formal, não obstante este item fosse
fundamental para determinar a educação de uma pessoa que é, por
assim dizer, auto-didata; aprendera as primeiras letras e a juntá-las
em casa, com a ajuda de sua mãe.
Lia
os almanaques daquela época e tudo que passava escrito à sua frente
inclusive o que vinha impresso no verso das folhinhas, tiradas
diariamente do calendário anual, preso na parte de trás da porta da
cozinha, cortesia de uma loja de tecidos. Devido ao seu grande
interesse pela leitura seu pai, aconselhado por sua mãe, contratara
os serviços de um professor solteirão, conhecido por Olinto. Não
era exatamente o que ela queria, posto que era mocinha e flertava com
um rapaz, também professor, “muito bonito” que faria o mesmo
papel do velho, com a diferença que o jovem a motivava muito mais;
porém, não ousou usar esse argumento para não revelar esse
segredo, mantido por ela à sete chaves, da ciência de seus pais.
Hoje ela conta esse episódio passado para suas netas, rindo,
inclinando a cabeça para baixo, alisando sua saia estampada com
pequenas flores pintadas, e comprida, que vai abaixo dos joelhos,
como se estivesse fazendo das mãos um ferro de passar, enquanto
fala.
Ela
diz para as netas: “hoje vocês têm quase tudo, são bonitas,
podem trabalhar, estudar, viajar, namorar, mas na minha época não
era assim; a mulher não tinha muita liberdade; geralmente era
preparada para se casar virgem e ter filhos.” As netas,
adolescentes, escutavam atentamente os ensinamento de vida da avó,
principalmente quando ela se referia a virgindade. Um costume que
parecia estranho e não importante para elas. A avó enfatizava que
ainda havia muitas conquista a serem realizadas, mas que cabia a elas
levar adiante.
Augusto
também diz que dona Abigail tem o hábito de usar cadernos para fazer
anotações de receitas de bolo, de sequilhos e de doces, com letra
cursiva arredondada. Quando escreve uma palavra, liga uma letra à
outra, sem erguer a caneta do papel, depois é que a grafa; quando
cabe acento.
Guarda
os cadernos em um armário trancado a chave, mas é comum as filhas
utilizá-los (apesar de que na internet e nos livros, encontrarem
muitas receitas; dizem que não são como as receitas da mãe).
D.
Abigail percebe os olhares demorados de Augusto, como faz uma máquina
de exame médico, que ler todo o corpo, esquadrinhando, da cabeça
aos pés, mas tenta disfarçar; no íntimo, sente-se orgulhosa de
ainda ser desejada.
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