O Louco

 O Louco

Naquele dia de manhã de verão uma mulher olhou para a calçada, atrás da cortina da janela de seu apartamento no primeiro andar de um prédio, e viu um homem, seu conhecido e vizinho, sentado no meio-fio da calçada, falando e gesticulando sozinho, falando ao vento, e alto. Era uma figura presente e conhecida dos moradores daquela rua.

(O prédio que a mulher morava, curiosamente, tinha o número final que era a soma dos dois primeiros).

Certo dia a mulher estava incomodada e impaciente, desceu e disse: “olha, você é um louco daqueles que jogam pedra na lua; eu quero lhe dizer que eu sou mais louca que você, às vezes fico enfezada sem nenhum medo de você e posso bater-lhe nessa cara suja”.

Está me entendendo? Disse ela”.

Aquele louco, tinha boa memória, conhecia e lembrava de quase todos moradores da rua, em momentos falava dos vizinhos como se estivesse qualificando um personagem. Ele falava como se alguém estivesse à sua frente: “olha fulano, estou lhe falando a verdade, mas parece que você não me entende ou não acredita em mim, dizia”. “Não tenho a obrigação de repetir o que falei durante esse tempo todo, viu?”. Virava-se de lado, saia andando como se uma pessoa estivesse ombro a ombro com ele, virava a cabeça num gesto teatral. Ia até o fim da rua e voltava e assim, incansavelmente; e quando voltava falava dos nomes de outros vizinhos. Quando “conversava” com uma mulher fazia um gesto de que estava segurando o braço dela e perguntava coisas e ria.

Agora já tinha mais uma personagem, que era mulher que lhe dava broncas e ele respondia dizendo que a mulher era feia e metida. Ela ouviu, desceu outra vez e deu-lhe um esculacho, ameaçando chamar a polícia.

Ele tremia de medo dela porque ela também parecia mesmo louca, com aqueles olhos grandes, redondos, arregalados e pretos e cabelos despenteados.

Aos fins de semana apareciam pessoas da família para visitá-lo, inclusive um filho, resultado de um curto relacionamento. Ele tinha boa aparência física, porém essa vantagem, elogiada, em tempos, até pela mulher que brigava com ele foi, gradualmente, desaparecendo.

Ela ficou sabendo que ele estava cavando um buraco em continuação da garagem de sua casa, como um ladrão que faz um túnel para alcançar os cofres de um banco ou mesmo escapar da prisão. Era um subterrâneo, embaixo da casa da família dele que estava em processo de inventário; parecia escavação de uma mina.

A parte em cima da garagem era a casa que fora alugada e o louco morava, desconfortavelmente, na garagem. Era um trabalho de retirar a terra, colocar em sacos, levar escondido para por o conteúdo nas caçambas em frete as casas da rua que estavam sendo reformadas.

A mulher chamou o fiscal da Prefeitura. O fiscal foi ao local e o advertiu: “O senhor tem que parar com isto, caso insista será preso”. E o louco ficou morrendo de medo, porém continuou teimosamente trabalhando à noite, e dormir durante o dia.

Em torno de três dias depois os vizinhos deram falta do louco, foram a delegacia de Polícia, fizeram um boletim de ocorrência. A polícia foi naquele mesmo dia com um mandato judicial. Tiveram que cerrar o cadeado do portão da garagem, entraram e viram que o homem, o louco, estava morto, já em processo de decomposição, dentro do túnel. Levaram-no para o IML para que os médicos legistas fizessem os exames e descobrissem a causa da morte.

O homem, “o louco”, sofrera um infarte fulminante, conforme descrito no Atestado de Óbito.

Como disse Kurt Vannegut em Matadouro Cinco: “É assim mesmo”.

AlinsS

28/09/2024

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