Nissei falante

Nissei falante

Parte I

Nissei, ortopedista, 86 anos, delicada nos gestos e no falar, magra, olhos miúdos e puxados, e o peso nas costas por descender de uma cultura milenar; talvez por isso o corpo tenha arqueado como uma casca de melancia. Fala com segurança, mostrando muita sabedoria.

Ela disse, depois de levantar-se para me atender à porta: “entre e sente-se” e deu meia volta ao redor da mesa para sentar-se.

Pegou minha ficha já previamente preenchida, com meus dados básicos, pela assistente, olhou e confirmou alguns dados. Aí ela olhou pra mim e perguntou: “o que o senhor tem?” Eu disse: “estou com problema no nervo ciático.” Ela disse: “sei o que é isto, porque ele também me perturba.” Pegou o estetoscópio e mediu minha pressão. “Está um pouco alta”, disse ela, “mas para sua idade, não tem tanto problema.” “Toma remédio pra pressão?” Eu disse que sim. “Qual?” Tirei do bolso parte da caixa do remédio, que sempre carrego no bolso e mostrei-lhe. Ela disse:”toma mais algum?” Eu disse sim, “este aqui,” também mostrei-lhe parte da embalagem do outro remédio, para próstata.

Ela disse: “tem que fazer alongamentos ou fisioterapia ou pilates.”

Eu pensei: uma médica com a experiência que tem e ainda sofre do mesmo incômodo que eu, então estou com sorte! Ela pediu-me mais informações, se eu já tinha tido alguma crise, etc. Eu disse: “há mais ou menos quatro anos.” Acrescentei que fizera vários exames e que tomara antibióticos e anti-inflamatórios.

Ela pediu-me para sentar-me na maca clínica e pressionou minha coluna de cima a baixo, de várias formas, sempre me perguntando, a cada vértebra, se eu estava sentindo dor. Na última vértebra, tendo o cóccix como vizinho de baixo, senti dor. Ela disse: “não é tão grave, vamos pedir uma ressonância magnética”. Ela disse brincando: “já estava me preparando para dar-lhe uma injeção, mas não é o caso.” Receitou-me um comprimido para tomar via oral, uma vez por dia, após o almoço.

Uma pergunta doutora: “posso beber um vinhozinho, indaguei já adivinhando a resposta?” Ela disse: “cortaria o efeito do remédio.” Calei-me.

Entre essas conversas ela falou bastante. Uma “japa” que fala muito.

Disse que dirige e quando sente dor toma Novalgina. Eu falei pra ela que tomei esse remédio, há muito tempo, mas não me senti bem; tive o batimento cardíaco acelerado; pode ter sido erro na dose; pensei, mas não falei.

Parte II

O exame de ressonância magnética naquela máquina que parece um tubo, o túnel do metrô, é um horror, principalmente para quem tem problema claustrofóbico. No início estava me sentindo um astronauta. Tive que vestir uma roupa azul clara, tirar tudo que havia de metal; esqueci de tirar minha prótese dentária, embora a enfermeira tivesse me orientado a tirá-la. Coloquei protetores auriculares, depois vi a razão de usar esse item de EPI: no decorrer da leitura a máquina emite vários sons altos; noutro momento parece com o som de uma máquina de costura. Num desses instantes estava cochilando e me assustei.

O exame durou em torno de vinte e cinco minutos. A enfermeira disse, como se estivesse aliviada: “pronto, acabou!”

III Retorno com a “Japa”.

Retornei, com um envelope imenso contendo as chapas e um relatório de uma página. Médico, muitas vezes, quer saber o que está escrito no relatório feito pelo laboratório, raramente um médico verifica aquelas imagens em celulose, imagens que parecem fitas de filmes. Levei também um relatório de um exame feito em 2014. A médica comparou os dois relatórios e verificou que não havia muita diferença. “O que o senhor acha, sua situação em 2014, era melhor ou pior que a de hoje?” Eu respondi: “em 2014 foi pior, não conseguia andar direito e toda hora tinha que parar para descansar.” Ela escutou e repetiu que “sabia muito bem o quanto isso dói.”

No meu caso há uma vértebra pinçando um nervo.

Bom, falamos sobre outros assuntos, até sobre o que Buda disse sobre desprendimento, sobre coisas materiais, desapego, jardinagem, etc. Falamos também sobre o bairro da Liberdade, comidas. Ela disse: “coma tudo que você gosta e lhe der prazer, porque na minha idade geralmente come-se muito pouco.” “Tome um cálice de vinho por dia, é bom para o coração.”

Ela disse: “quando sinto dor, tomo Novalgina.” E eu esperando que ela me desse uma receita; entretanto não me deu, não prescreveu um "cibasol". Aí lembrei de minha mãe: “quem já viu um médico que não receita remédio para um doente, não é médico?!” E tinha que ser daquelas receitas escritas, que precisavam adivinhar o que estava escrito, precisariam de alguém como Champolion, que decifrou o hieroglífica na “Pedra de Roseta.” (Por sinal vi essa pedra no Museu Britânico, me emocionei, não piscava os olhos, não parava de olhar, por tudo que já havia lido sobre ela, todo simbolismo que representa).

A médica disse: “aconselho-o a procurar uma das seguintes modalidades de exercício: Ioga, Pilates ou Natação.” Aí ela disse:”no seu condomínio tem.”

Perguntou se eu era magro no passado. Eu disse que sim, que correra mais de dez anos; inclusive a São Silvestre, sete anos; aí ela disse: ”não pode correr agora.” Eu respondi: “sim, mesmo se quisesse.”

Gostei dessa médica, ela fez-me perceber o peso de sua cultura asiática mesmo sendo brasileira; de filosofia de vida, transmite muita tranquilidade ao paciente, através de um diálogo saltado, intercalado, que navega por assuntos diversos e volta ao objeto da consulta.

26/08/2021

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Aracati & Outros/as

Família Lins de Albuquerque

A seca de 1958