O furto de tecidos

O caso a seguir é quase todo verdadeiro. Pelas verdades eu respondo; pelas inverdades, não assumo nenhuma responsabilidade. 

Zulmira era uma galega* muito bonita de mais ou menos trinta e cinco anos. Loira, alta, olhos verdes claros, vestia-se bem, saias bordadas e barradas com bicos largos, blusas de cambraia de linho ou de puro algodão. Tecidos retirados da loja do marido e entregues para serem aviados pelas melhores costureiras do lugar. Era esposa de Juvenal, comerciante estabelecido no centro da cidade. Juvenal casara com Zulmira quando ele já contava mais de quarenta anos, já bem de vida, de tal sorte que para a noiva fora um bom partido, sendo ela filha de sitiantes do entorno da cidade. Juvenal iniciava uma calvície que o perturbava, mesmo tentando disfarçá-la com todo tipo de penteado. Era de média estatura, um pouco de barriga, queixo quadrado, falava bem e era prolixo.

Juvenal tinha um objeto material de prazer que era um Aero Williys de cor preta e que sempre estava brilhando de tão limpa e encerada. Ele manobrava o veículo todos dias de manhã para ir à loja que, pensando bem, nem precisava, poderia ir a pé, pois sua casa ficava muito próxima ao centro; mas ele era vaidoso, queria mostrar seu "status". 

Zulmira fora cantada em versos por um poeta popular que morava em uma rua paralela a dele, e o Juvenal ficou morrendo de ciúmes, mesmo não havendo provas de que o poeta se referira a sua mulher. Os versos rimavam com a letra e o som do "Z", mas até aí quantas mulheres haviam com nomes que começavam com a última letra do alfabeto? Havia também na mesma rua uma moça morena, muito bonita, de fechar o comércio, como diziam, cujo nome era Zenaide. Zenaide era fotógrafa, tinha o corpo quase que perfeito e um derrière respeitável, atributos que causavam temperamento de gargantas, olhares de cantos de olhos e suspiros, muitos suspiros. O poeta poderia ter-se inspirado nela, mas não sabe-se.

Juvenal, como sempre, dirigia seu carro em direção à loja. Marcara com o vendedor de tecidos o recebimento de algumas peças para confecção de ternos: linho, casimira inglesa, cambraia de linho para camisas, etc Todos tecidos caros. Recebera todos, conforme seu pedido.

No dia seguinte Juvenal abrira a loja mais cedo, pois alguns clientes já haviam lhe contatado para ver os tecidos recentemente recebidos. Quando verificou as prateleiras as peças não estavam lá, como ele deixara no dia anterior. Olhou pra cima e viu que o forro do teto estava aberto e dava para ver as telhas afastadas. Quando os clientes chegaram, não precisou dar muita explicação, pois a prova estava ali à mostra.

Voltou a contatar o vendedor e refez o pedido, nas mesmas condições do pedido anterior. Contratou um vigia, seu conhecido para dormir na loja.  Uma semana depois recebera as novas peças e as colocou nas mesmas prateleiras vazias. O vigia já dormia na loja em um local que não gerava suspeita. Naquele dia que a mercadoria chegou, lá pela meia noite o vigia ouvira um barulho nas telhas. Como o forro ainda não estava consertado, só as telhas repostas em seus lugares,  o ladrão retirou outra vez as telhas desceu por lá, em cima da prateleira. O vigia o vira parcialmente, à medida que o ladrão manejava sua lanterna. Dera pra ver que era uma pessoa de pequena estatura e talvez barriguda. Também dera para perceber que ele amarrara a ponta de uma corda no caibro e a outra ponta amarrara nas peças de tecido. Subiu e de lá de cima começou a puxar a corda até alcançar o telhado. No dia seguinte o vigia contara os detalhes para o Juvenal; informações que foram passadas para o delegado. O delegado, após ouvir a queixa, disse que era difícil encontrar o ladrão. A não ser que encontrasse alguém que comprara do gatuno, o que também não seria muito fácil de provar.

Certo dia o Juvenal fora depositar o dinheiro das vendas em uma agência bancária do Banco Industrial de Campina Grande. Vira uma pessoa vestida de calça e paletó de casimira listrada, de riscos, parecendo riscos de giz finos; do mesmo padrão de tecido que fora subtraído de sua loja. Juvenal não conteve-se, elogiou o tecido e o corte, certamente costurado por um bom alfaiate, e perguntou ao cidadão onde ele comprara um tecido tão especial. O cidadão respondeu que fora de uma pessoa que se apresentara como caixeiro viajante, mas que não lembrava o nome. Deu algumas informações que coincidia com as que o vigia lhe dera, ainda que poucas.

Juvenal suspeitara, com base nas informações do vigia e do comprador do provável caixeiro viajante, que poderia tratar-se dono da bodega** estabelecido em frente à sua casa. Até policiava-se para não pensar assim, mas o pensamento vinha sempre à tona. Punha a cabeça no travesseiro, olhava para o teto, custando a dormir. Informara tudo para Zulmira, sua esposa.

Foi a delegacia e relatou ao delegado todas as informações que tinha. O delegado intimou o comprador do tecido a depor. Deixou passar mais uns dias, mandou um de seus auxiliares visitar à bodega, consumir alguma bebida e comentar discretamente sobre tecidos, roupas, onde comprar e sentir a reação do dono. Percebera que no dono da bodega estava um pouco tenso. Voltou para delegacia e reportou ao delegado suas impressões.

O delegado, ele próprio, visitou a bodega na semana seguinte, sem fazer perguntas, apenas para comprar uma Seven-Up, e saíra bebendo o refrigerante.

O dono da bodega não agüentou a pressão, foi à delegacia e confessou que os furtos foram feitos por ele. Foi preso e devolveu algumas peças de tecidos não passadas adiante.

* Galega ou galego, é como comumente são chamadas as pessoas loiras no Nordeste.

** Bodega, pequenas vendas, mercearias do Nordeste.

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