“ Te ilude, pescoço de grude!”
“ Te ilude, pescoço de grude!”
Vou
em direção a Vila Romana, bairro da Zona Oeste de São Paulo,
encontrar minha namorada e futura esposa. Tomo o ônibus na Praça
Marechal com letreiro de destino homônimo.
Sábado
à noite, início dos anos setenta. Calça de jeans justa, cinto de
couro largo, camiseta, chaveiro preso à arreata da calça, gravado
Putz, comprado na feira hippie na Praça da República; à moda de
meus colegas do Cairú Vestibulares.
O
ônibus percorre as ruas calçadas de paralelepípedos, ladeadas por
sobrados conjugados e amplas casas de muros baixos e gradis de ferro
desenhados; as ruas têm nomes de famosos personagens do Império
Romano: Clélia, Tito, Aurélia, Caio Graco, Catão, Espártaco,
Faustolo, etc. O coletivo é bem conservado e confortável, haja
vista ser fim de semana, sempre haveria de ter assentos disponíveis.
O ambiente nas ruas é de tranquilidade, aqui e acolá um bar cheio
de clientes.
Nessa
época ainda me sentia “estrangeiro”, embora estivesse em meu
País, mas as diferenças não eram só geográfica, econômica,
social, de sotaque, era também de tratamento. O imigrante,
diferentemente do migrante nordestino, era sempre bem tratado;
bastava ter sobrenomes europeus, com efeito italianos, para terem
prestígio e as melhores oportunidades. Temos que considerar, para
sermos justos, que os imigrantes estavam mais bem preparados para enfrentar as adversidades, em
geral, que os migrantes.
Bom,
eu ia em direção a casa da namorada, e quase sempre que chegava lá,
minha futura sogra estava se divertindo diante da TV preto e branco,
imagens captadas pela antena telescópica interna e os poucos canais
disponíveis eram trocados manualmente.
Ela
se divertia com os personagens das novelas, dos filmes, dos programas
da TV. Muitas vezes ela falava uma expressão que eu nunca ouvira de
alguém: “te ilude, pescoço de grude!”
É
uma metáfora. Toda vez que alguém almejava, quase sempre, uma
conquista mas não tinha condições: econômica, beleza, política
ou social para alcançar. Nas novelas (na época das boas novelas,
com ênfase para TV Tupy, por exemplo: “Vitória Bonelli”,
“Mulheres de Areia”; após Tupy, algumas poucas da Globo.
B.J.Thomas enchia as casas de som com “Rock and Roll Lullaby”, em
“Selva de Pedra”), era comum haver um ator com o papel de metido,
atrevido, enxerido, de querer entrar onde não podia; namorar ou
casar com quem não merecia, etc.
(Não
vamos considerar aqui o politicamente correto, mesmo porque na época
que ela viveu, felizmente, não se falava nisso).
A
hipótese, defendida pelos filhos, é que a expressão é de autoria
da mãe deles. Para embasar esta hipótese eles dizem que ela
trabalhou em uma tecelagem durante trinta anos, até se aposentar;
seu marido, 35 anos na mesma empresa que ela, no setor de
carpintaria. Um feito notável: foi o único emprego do casal! No
setor que ela trabalhava, de tecelagem, era lotado de mulheres;
evidentemente elas tinham muitos contatos, ao chegarem a empresa, no
intervalo, quando deixavam a fábrica ao final do expediente, e nesse
“melting pot”, nessa “mistura cultural”, pode ter surgido a
expressão criada por ela.
Ela
era astuta, sagaz como uma ave de rapina, como base, como alicerce;
delicada, posto que a ave também tem seus momentos de delicadeza.
Exibia nos olhos e na face datada pelo tempo (como anéis ou cascas
que datam o tronco de uma árvore), a sabedoria que só a vivência,
as tristezas por pedas, as alegrias, a vida dura no trabalho, a
maternidade, enfim podem trazer.
A
fábrica ficava na região da Grande Recife, nas proximidades de
Jaboatão dos Guararapes. Morei um ano em Recife e nunca ouvi de
alguém tal expressão e em nenhum lugar do Nordeste; de certa forma,
isto reforça a hipótese da autoria. Comecei a ouvir dela, quando a
conheci já em São Paulo, quando dizia a expressão e ria que
balançava a barriga ou então sentada, vendo TV, em sua cadeira de
balanço.
Hoje
em dia, em nossas conversas com a família, ou quando estamos vendo
algum filme ou TV, usamos a expressão e nos divertimos; faz-se
necessário explicar para os filhos, netos e agregados, nascidos
paulistanos, como é ou quem é uma pessoa que mereça ser tratada de
“pescoço de grude.” O significado aproximado é “pé rapado”,
aquele sujeito que nem toma banho direito, por causa disso é que ela
o chamava de “pescoço de grude”. Outro exemplo: quando uma
mulher acredita em um homem, apaixona-se por ele, apesar de todo o
mundo ver, e só ela não enxergar, que ele não é o cara certo pra
ela, pode-se dizer: “te ilude, pescoço de grude.”
Uma
expressão nunca pode ser traduzida em sua total profundidade, sempre
vai faltar algum detalhe, alguma sutileza; sempre vai faltar o humor,
o sotaque; porque carrega elementos locais, que só quem vive ou
viveu no local vai sentir e entender por inteiro. E assim dar-se a
qualquer expressão regional ou de outro idioma.
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