O homem de branco

Às sete da noite Sebastião avisou à Elvira, sua esposa, que ia jogar sueca na casa de Juvenal, e saiu. Já começava a escurecer, mas previa-se noite de Lua Cheia, devido a esse fato, na volta para casa o caminho estaria iluminado por nosso satélite; de qualquer forma se preveniu enfiando uma lanterna a pilha, no bolso de trás da calça. A casa de Juvenal ficava a mais ou menos dois quilômetros, distância que ele cobriria em pouco tempo a pé. Afinal, jogavam cartas pelo menos uma vez por semana, geralmente aos sábados, e aquele dia era sábado. Acostumara a fazer esse trajeto, sabia onde havia buracos, curvas, árvores frondosas feito um juazeiro que espalhava sombra sobre o caminho. Logo no início do caminho, havia um pau D'arco há muito tempo morto, de galhos secos, por ter sido atingido por um raio, que agora servia de local para pouso de urubus. Ele olhava para os urubus e pensava como aquelas criaturas viviam de comer só carne podre. Tentava justificar para si que aqueles animais faziam bem para a Humanidade, fazendo limpeza do mundo. Comiam os restos dos bichos magros, mortos pela fome na época de secas prolongadas. Ver aqueles bichos mortos, de pele seca, grudada aos ossos, olhos abertos e vidrados, sobre a terra quente e rachada, o cheiro da carniça que ia e voltava conforme a direção do vento, e os urubus disputando os melhores pedaços; não era uma cena que alguém desejasse ver.
Ia o tempo todo assoviando, com a "cabeça jogada para o lado", como fazia Tônio Kroeger(*), as músicas que ouvia nas rádios que às vezes cantava; assim faria o caminho mais rápido e distraído. Muito raro cruzar com alguém àquela hora. Por isto ele parava e fazia alguns passos de dança sobre a terra ainda morna. Embora raramente alguém encontrasse uma alma perdida, um vizinho jurara que vira de longe um homem relinchar que nem um jegue; houve muitos comentários referindo-se a ele, contudo ele nunca soubera, como sucede aos maridos traídos.
Sebastião era um baixinho entroncado, de braços roliços e fortes; era meio relaxado ao vestir-se, meio desligado e tímido. Às vezes a camisa bem engomada, ele a abotoava encaixando os botões nas casas erradas, de tal forma que sobrava pano embaixo e faltava em cima; ou o colarinho com as pontas levantadas. Quando ele visitava a casa do irmão, sua cunhada costumava corrigi-lo, porque sua esposa já cansara de ajudá-lo a arrumar-se.
Por fim chegara à casa do sítio do vizinho. Faziam partidas de sueca com quatro jogadores. Havia sobre uma grande mesa de madeira, fumo de corda, papel para enrolar o fumo e fazer o cigarro, e cachaça. Não bebiam muito, porque o Juvenal controlava, para evitar discussão sem futuro e perda da razão.
Jogaram várias mãos e aproveitavam para por a conversa em dia. Eram assuntos sobre os trabalhos pesados, invasão das terras por animais, roubos, colheitas boas e ruins, etc.
Já passava um pouco da meia noite quando decidiram parar o jogo. Sebastião despediu-se dos amigos e começou o caminho de volta para casa. Como previra, a Lua Nova iluminava o caminho de areia fina e de pedregulhos. Fazia um silêncio sepulcral. Lá pelo meio do caminho viu uma pessoa magra, alta, cabelos pretos, vestindo branco, inteiramente de branco e de sapatos pretos. A distância que os separavam era em torno de cinquenta metros, ou um pouco mais. Sebastião começou a andar mais rápido e o sujeito também apressou os passos; começou a correr, e a pessoa também correu, de tal forma que mantinham a mesma distância que os separavam. De vez em quando o sujeito olhava para trás mas não dava para enxergar direito os detalhes de sua face. Sebastião começou a tremer de medo, posto que olhando para o chão não vira rastros do desconhecido. Gritou: "Ei, quem é você?" Não teve nenhuma resposta. Em uma das curvas, devido a vegetação alta, o sujeito fora encoberto, dando a impressão que havia desaparecido. Quando o Sebastião alcançou a curva, voltou a vê-lo. E fora assim aparecendo e sumindo até chegar perto de sua casa. À essa altura o sujeito ganhou a capoeira, via-se a camisa dele tremulando pelo efeito do Vento Aracati. Sebastião o viu subindo um morro, depois disso desapareceu completamente.
Quando chegou a casa não teve como comentar com sua esposa Elvira que era muito branca, de pequena estatura e sardenta, deve ter tido poliomielite, na infância, pois apresentava um dos braços e dedos tortos; também uma perna mais curta que a outra, já estava dormindo, deixou para falar no dia seguinte; embora isto lhe custasse o sono. De manhã enquanto comia cuscuz de milho com nata de leite salgada e café puro, começou a comentar o ocorrido na noite passada com a Elvira. Ela ouviu todo o relato do marido e disse que essa mesma pessoa, pois ela achava que devia tratar-se da mesma, logo depois que ele saíra para jogar, aparecera e pedira um copo com água, olhando para os lados, como estivesse escondendo ou procurando algo, movia os lábios pálidos como se quisesse perguntar alguma coisa, mas não conseguiu emitir nenhum som. Assim que bebeu a água, enquanto ela fora guardar o copo, ele sumira. Ela se arrepiou inteirinha e tremeu incontrolavelmente as pernas, como vara verde. Ela disse: "Sebastião, volta meia ouço umas conversas de alguém que relincha que nem jumento no caminho pra casa do Juvenal. Está acontecendo coisas estranhas por aqui; de um homem esquelético com uma gadanha no ombro, que parece a figura da morte. Agora esse homem de branco que aparece e desaparece de repente, feito alma do outro mundo." Sebastião arqueou as sobrancelhas espantado mas nada disse.
(*) Tônio Kroeger, personagem do conto homônimo, de Thomas Mann.

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