A voz da moça


A voz da moça
A voz da moça vinha de um sobradinho de fachada de tijolos aparentes; janelas venezianas pintadas de verde-escuro e molduras pintadas de branco; porta de madeira maciça da mesma cor das janelas; coberto com telhas francesas; daqueles imóveis que ainda se ver em algumas vilinhas nos bairros antigos de São Paulo; só nesses bairros centrais da cidade vêm-se iguais, enquanto as construtoras não comprarem para demolir e construir prédios de aparatamentos. Este sobradinho que me refiro estava em uma rua da Moóca.
Digo que a voz era de uma moça, porque era voz de gente jovem, e a voz de gente jovem é fácil de se identificar. Ela cantava das 17:00 às 18:00, nenhum minuto a mais, nenhum minuto a menos. Algumas pessoas se aglomeravam nesse horário em frente ao sobrado para ouvir aquela voz ímpar que os de meia idade diziam que era de Karen Carpenter, de Celine Dion, outros de mais idade diziam que era a voz de Julie Andrews, outros ainda diziam que não precisavam ir tão longe, era de nosso quintal, era a voz de Elis Regina; pelo que as pessoas falavam e comparavam, tratava-se de uma grande cantora que cantava canções em Inglês e Português. O curioso é que ninguém conhecia a moça, tampouco a família dela. Perguntavam-se se morava sozinha, questionavam os vizinhos mas ninguém dava a menor informação sobre ela, diziam que o imóvel estava vazio, em inventário, há muito tempo. Não podia ser de um aparelho de som que estivesse programado para tocar, trabalho que teria sido feito por algum caprichoso aficionado por música; mas era só uma bela voz, viva, delicada, feminina, muitas vezes sofrida.
Os que gostavam de literatura lembravam de um conto de Oscar Wilde “O Rouxinol e a Rosa” e também de “Pássaros Feridos” de Colleen MacCullough, que fazem referência ao auto-flagelo que alguns pássaros se submetem, espetando seus peitos em grandes espinhos, para emitirem seus melhores cantos, até morrerem. O fato é que o canto da moça era sofrido, tanto quanto dos pássaros, tirava o máximo de cada palavra, de cada verso e de cada nota da música.
Depois de algum tempo souberam que naquele sobradinho morara um casal, nos anos trinta, na época da Revolução Constitucionalista, que tinha uma única filha dotada de um enorme talento para cantar, mas que os pais na época não queriam que ela fosse cantora, porque “não era profissão de gente séria”, conforme diziam. Desmotivada e dependente dos pais, ela estudara enfermagem mas continuara a cantar escondida, em alguns eventos na universidade, após os plantões do hospital. Ganhara a liberdade de cantar eternamente, sem que ninguém a contestasse, após sua morte na metade dos anos cinquenta, decorrente de uma cirurgia de uma ulcera péptica perfurada no estômago.



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