Ela era um fantasma que contava estórias

Ela era um fantasma que contava estórias
As duas mulheres, de idades por volta de quarenta e poucos anos, vestindo roupas de chita, saias que desciam até abaixo dos joelhos de ambas, padrões estampados de pequenas flores, porém distinto um vestido do outro, na costura e na cor; usavam sapatos de salto baixo. Passaram batom vermelho e rouge nas bochechas. Enquanto passavam esses produtos nos rostos, compartilhavam um espelhinho redondo, faziam isso logo depois da missa; cheiravam a leite de rosas . Os tons do batom e do rouge realçavam mais em uma delas, que era branca e menos na morena; embora a morena não deixasse de também ser bela. Era um domingo e a feira estava movimentada. Elas estavam postadas à porta de entrada do Mercado Municipal de Marizópolis, enquanto observavam o trânsito das pessoas. De vez em quando flertavam com homens que passavam, em um contrato tácito entre as duas.
Quem observava a cena à pouca distância era Francisca, cujo sobrenome não carece de ser dito, ademais não sabiam-se nem qual era sua origem. Dei-lhe esse nome porque é de uso comum, contudo não era seu nome real. Francisca era alta, cabelos castanhos penteados para traz, presos com uma travessa feita de chifre de boi; vestia-se de roupa franciscana: vestido marrom, amarrado com um cordão à sua cintura, separando seu corpo em duas partes, como se fosse uma ampulheta, e sandálias típicas da Ordem Franciscana.
Francisca continuou olhando para as duas mulheres que àquela altura fumavam cigarros Yolanda e aguardavam seus maridos que bebiam cachaça, em uma bodega apensada ao mercado.
Francisca soubera que as duas cuidavam de um doido que morava nos arredores da vila. E corria à boca pequena que até davam banho nele e à estória do banho foi acrescentado que elas massageavam o avantajado membro do doido, e mais ainda, que elas o saciavam.
São fofocas que Francisca memorizava e percebiam-se que ela tinha um grande talento para ouvir e prestar atenção no físico das pessoas; ficava tudinho, tintim por tintim, anotado em seu cérebro privilegiado. Conclui-se que poderia ter sido uma notável escritora, caso tivesse ido mais além nos estudos, ou se fosse bem assistida por orientações. O que ela fazia bem era contar as estórias nas reuniões nas calçadas à noite, aguçando a curiosidade e o temor de alguns (porque a carapuça sempre pode servir em alguém), dos ouvintes. E ela não tinha só esta estória, tinha várias, e raramente repetia; a não ser que alguém lhe pedisse aí ela recontava, também quando havia pessoas novas no grupo era necessário replicar. Quando era história ela tornava-a em estória, mudando os nomes, o os locais, as datas. Mesmo assim surgiam perguntas: “mas isto não aconteceu a tal família ou a fulano de tal?” Ela habilmente apressava-se e dizia que não e mudava sutilmente de assunto.
Outra história que ela contava era de uma moça loira, nova e muito bonita que deixara a família e fora de mala e cuia para o frejo em Sousa. Ela perguntava: “sabe aquele cabaré que fica perto do campo de futebol do time Sousa? Pois ela foi pra lá. E ela dá conta de todos homens que lhe procuram, quem lhe dar mais dinheiro, quem tem o coiso pequeno, quem tem o coiso grande; e são muitos, aqui de Marizópolis.” Os homens ao ouvirem esse relato ajeitavam as bundas nas cadeiras, incomodados; as mulheres trocavam olhares de reprovação. Uma voz feminina indagou: “não é anti-ético revelar os segredos dos clientes?” Os homens mais do que depressa responderam: “sim, isto é um absurdo, não é certo.”
Arnaldo que estava calado, pigarreou, limpando a garganta. Aí disse: “meu pai falava que o homem que tem uma mulher, tem meia; quem tem duas, tem uma.” A mulher dele, Janete, olhou furiosa pra ele e perguntou: “e quem tem duas, ainda precisa de mais? Por acaso ele era um Sultão? Ora que besteira! Tem gente que não consegue nem dar conta de uma.” Aí todos acharam graça.
Francisca dizia que era de Juazeiro do Norte, no Ceará. A princípio as pessoas achavam estranho ela aparecer e depois passar semanas sem dar o ar da graça. Mas aí ela retornava e dava as explicações dela, convencendo facilmente as pessoas. Em uma dessas ocasiões, de reuniões nas calçadas, resolveram tirar uma foto de todos para registrar o bom momento, mandaram revelar o filme em Sousa, retiraram as fotos reveladas, juntaram-se para ver as mesmas. Verificaram que em nenhuma delas Francisca aparecera, só o lugar vago, delineado, com o contorno de seu corpo. Pensaram que havia problema na revelação, contudo, conferiram os negativos, tampouco viram Francisca. Francisca não estivera presente nesse dia de exibição das fotos; nunca mais aparecera.
Tempos depois, a Terra já dera muitas voltas em torno do Sol, souberam que Francisca era uma religiosa franciscana, da Ordem de Santa Clara, e que morrera em 1910, com quase noventa anos de idade.

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