A Casa da Moóca
A
Casa da Moóca
O
design
e a
arquitetura da casa eram dos anos quarenta, talvez fora planejada e
construída por um capomastro*,
na Moóca, bairro central da cidade de São Paulo, onde boa parte dos
imigrantes italianos moravam. A casa tinha fortes linhas italianas:
nas janelas venezianas pintadas de verde-escuro, molduradas de
cimento e pintadas de branco; nas portas altas;
na
parte externa
pintada
com “terracotta
orange”; detalhes
mantidos
mesmo
depois de algumas reformas ao longo dos anos.
Essa
casa que servira de residência de várias gerações da mesma
família, palpitava-se que testemunhara nascimentos, casamentos,
amores, traições, desavenças e mortes. Olhada de frente, um muro
alto, metade de tijolos e colunas revestidos de argamassa e a outra
metade, um gradil de ferro trabalhado, com grades cheias de detalhes.
O portão de duas folhas, também de ferro, seguia o mesmo formato do
gradil do muro. Quando passava-se o portão, atravessava-se o jardim
por um caminho de pedras, ladeado por bancos de madeira, um pinheiro
de um lado e um álamo do outro, o restante do espaço era bordado
por grama e azaleias; caminhava-se uns dez metros, antes de
efetivamente entrar na casa. Havia uma escada de degraus revestida de
mármore, mostrando o desgaste inerente ao tempo de uso; corrimão de
madeira e ferro, também de ferro trabalhado; um pequeno alpendre de
molduras de ferro prendia os vidros que protegia da chuva a porta de
entrada; esta consistia de duas folhas de madeira, cada folha com
janela, grade de ferro e vidro jateado com desenhos de deusas
greco-romanas e almofadadas na parte inferior. Era uma grande casa de
muitas salas e quartos, pé direito alto, sem dúvida construída com
o propósito de abrigar famílias numerosas. Pois essa propriedade,
nos anos setenta, fora alugada para uma empresa de produção de
filmes de curta e longa metragens.
Nos
fundos, devido as necessidades do novo locador, fora construído um
galpão para realizar filmagens em locações internas. Nessa área,
também se faziam, às sextas feiras, final do expediente, o
que viria a se usar mais tarde a expressão
“happy
hour”.
Havia
em torno de quinze pessoas fixas na empresa, entre as quais dois
sócios-diretores: um que cuidava da administração e o outro da
produção. Os demais: artistas, músicos, roteiristas, entre outros,
eram contratados como “free
lancers”,
durante o tempo que durasse as filmagens.
Naquela
época ainda pairava no ar os sons, os acordes, os gemidos das
guitarras do festival de Woodstock. A música dos Beatles, “ With a
Little Help from my friends” interpretada por Joe Cocker, com sua
voz forte e rouca, era celebrada. Algumas pessoas da equipe de
produção, quando não havia produção, juntavam-se em uma sala,
trancavam a porta, ligavam uma vitrola para tocar músicas dos
Beatles, de Jane Joplin, de Jimmy Hendrix, de Santana, do The Who e
outras músicas do referido festival. Quem passava na frente daquele
quarto, transformado em sala de trabalho, mesmo com a porta fechada,
sentia um forte cheiro, inconfundível, de maconha. Esse pessoal se
portava, se vestia com roupas e usava cabelos compridos, mau
penteados, seguindo o estilo dos “hippies”.
Alguns tinham a aparência do que viria a se chamar no futuro, com
mais intensidade, de zumbis.
Trabalhavam
três pessoas na área administrativa, muito jovens: a secretária, o
faturista e o contador. A secretária era bonita, alta, pele morena,
cabelos pretos, longos e ondulados, de família de classe média,
fazia curso de administração em uma famosa Universidade; era casada
havia menos de dois anos, com um homem que não lhe dava muita
atenção: chegava sempre tarde em casa, segundo ela confidenciava a
quem ela tinha confiança; ela não sabia explicar o motivo de ele
não mostrar o devido interesse por ela; às vezes pensara que ele
tivesse outra mulher. O faturista tinha em torno de vinte anos,
altura por volta de um metro e oitenta, ombros largos, pele branca e
olhos claros, era bonito; a secretária devia ter em torno de
dezenove e o contador vinte e dois. Naquele dia o faturista e a
secretária, que ajudava no fechamento das faturas, ficaram
trabalhando para concluir o encerramento do mês, sozinhos na casa.
Já passava das vinte e duas horas e os trabalhos que se propuseram
fazer estavam concluídos. Ela sentou-se em uma cadeira na frente da
mesa dele, que era uma mesa de madeira sólida e larga, em cuja
superfície cabiam máquinas de escrever e de calcular, blocos de
faturas. Deixou a porta entreaberta e começou a conversar
demonstrando sensualidade, com um leve sorriso de permissão nos
lábios; ele esticou os braços sobre a mesa e pegou nas mãos dela,
ela correspondeu o gesto apertando suas mãos. Um contrato naquele
instante se estabeleceu: tácito, sem formalidades; eram só os
movimentos dos olhos e das mãos que emitiam sinais de reciprocidade
e cumplicidade, não havia palavras, nem precisava. (É bom dizer que
já houvera uma curta aproximação física dela com o faturista, foi
quando houve uma comemoração pelo encerramento de um filme; ela
bebera um pouco mais da conta e o abraçara demoradamente, com todo
corpo). Ato continuo, ela deu a volta em torno da mesa, abraçou o
rapaz, sentou-se em seu colo e beijou longamente sua boca, como se
fora a última vez. O faturista a colocou sentada sobre a mesa,
segurando-a pela cintura, a qual acolhia suas mãos largas
adequadamente. Saia acima dos joelhos, porém não era mini-saia,
pernas compridas e roliças, como se fora uma boneca bem feita de
pano e preenchida, bem socada de algodão. Ela abriu a blusa e tirou
a roupa que era dispensável; e ali mesmo, sobre a mesa, eles fizeram
o que não precisava ser dito nem ensinado. O desejo contido,
economizado, fizeram o ato ser rápido mas não isento de prazer
intenso. Ela disse, após o intercurso, que não estava fazendo
aquilo por amor por ele, deixou bem claro que era necessidade física
momentânea, passageira, como uma chuva de verão; caso o marido
voltasse a procurá-la, normalmente, ela não precisaria mais dele.
Ele balançou a cabeça assentindo. Ela acrescentou: “não preciso
nem lhe pedir que guarde esse segredo, em absoluto”. Ele pensou
para si que estava sendo usado; era mais comum às mulheres serem
objetos de uso, não os homens, mas os tempos eram outros, os ventos
sopravam mudanças, por isto absteve-se em comentar. E assim, com
essa, digamos, advertência feita por ela, repetiram mais algumas
vezes, em locais improvisados, os atos físicos de amor; e um dia,
conforme ela avisara, pararam. Naquele dia ela disse ao faturista que
tudo voltara ao normal com o marido dela; e ele disse que sentiria
sua falta, todavia a entendera.
Alguns
anos depois, quando a secretaria e o faturista já não mais
trabalhavam na empresa, o caso fora contado com todos os detalhes
pelo contador (que ouvira o relato do ex-faturista orgulhoso) para um
dos sócios da empresa, o que cuidava da administração. A reação
do diretor foi de espanto e de descrença, disse: “aquele filho da
puta comeu minha secretária? Eu devia tê-lo mandado embora antes,
não me perdoo por isto; quando aquele indivíduo cometera alguns
erros, quando deixara de fazer a guia dos impostos, quando
testemunhara em um processo trabalhista, que atuou claramente contra
minha empresa, eu devia tê-lo posto no olho da rua”; e desfiou uma
lista de motivos.
O
desabafo do diretor dava a impressão de frustração e até, pode-se
dizer, de um pouco de inveja, como se ele mesmo tivesse deixado
escapar alguma oportunidade.
Essa
casa que abrigara silenciosamente este e outros casos não sabidos,
não deveria ser a única, posto que havia muitas outras que, sem
dúvida, também acolheram histórias e estórias.
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