Em algum lugar, com um celular

Em algum lugar, com um celular
 
Pois a mulher estava olhando a tela do celular, no meio da rua, parada sobre umas faixas zebradas, cercadas por “tartarugas”; aqueles objetos amarelos, com placas refletoras, fixados ao asfalto, sinalizadores de trânsito, que os motoristas reclamam quando passam por cima delas, por causarem desbalanceamento das rodas podendo até fazer avarias nos pneus e também afetar a suspensão dos carros.
Ela vestia um roupão, cor-de-rosa-claro, amarrado à cintura por um cinto do mesmo tecido, por cima de uma blusa e da calça comprida, que descia até o meio das panturrilhas; calçava sapatos pretos de salto alto e por vezes girava a perna usando um dos saltos. Ela era alta, loira, cabelos (aparentemente) pintados que desciam até os ombros, bem penteados, porém não dava para ver seu rosto porque ela estava quase de costas para o observador.
Ela passava sobre a tela do aparelho o dedo indicador da mão direita enquanto que com a mão esquerda o segurava. E a mulher continuava a olhar para a tela do aparelho celular e de vez em quando olhava em direção a casa que morava, que estava a uns cento e poucos metros de distância; como se estivesse evitando que alguém a visse, que estivesse escondendo algum segredo; como se dentro de sua casa não tivesse a devida privacidade. E estava muito frio naquela noite de julho. E ela já fizera isto algumas vezes em outras ocasiões, sempre depois das dez da noite. Sua gata ou gato, não dava para saber qual era o sexo à distância, saíra a sua procura e por ser muito esperto ou esperta, como todos os bichanos, a viu e correu em sua direção, passou entre as pernas da mulher, à altura das panturrilhas nas quais passava seu rabo peludo, pela frente e por trás, como se estivesse pedindo que ela voltasse para casa. Lá pelas onze e meia é que a mulher rumara para sua casa e o bichano atrás com a calda levantada para cima, não totalmente reta, parecendo formar um ponto de interrogação(talvez questionando o que sua dona tanto tempo fazia olhando o celular).
Deu para o observador saber que ela entrara em casa, pela batida da porta no batente.
Certa noite a mulher estava no mesmo local, quase de costas, como em outras vezes. O observador, numa atitude impensada, ligou o lustre da sala. A mulher virou-se rapidamente para frente para ver de onde vinha a luz(numa atitude da mulher de Ló, embora não tenha se transformado numa estátua de sal). Ela viu um vulto na janela da casa para a qual ela dava parte das costas, embora ele tenha permanecido imóvel, como um totem, ela desconfiou que estava sendo observada. Contudo, deu para ele ver o rosto da mulher, não com detalhe os olhos, e concluir que tratava-se de uma mulher de rosto bonito e semblante calmo e educado. O observador pensou no filme “Janela Indiscreta”, e Calculou sua idade ao redor de cinqüenta anos.
Por que ela estava surpresa? Pensou o observador. O observador concluiu que ela estaria fazendo algo errado, porém era difícil saber e, certamente, nem era da conta dele: chafurdar a vida da alheia.
Depois daquela noite a mulher não mais aparecera por uns dois meses; todavia, voltara, e com ela, a companhia de um homem que poderia ser seu marido, embora parecesse bem mais velho do que ela. Ela e o “suposto” (hoje em dia tudo é suposto!) marido, olharam algumas vezes para a casa do observador, como se ela estivesse contando o ocorrido, porém àquela altura o observador não a observava atrás da cortina, fechara as folhas da janela veneziana, deixando apenas uma fresta, pela qual a observava e, com o tempo, não mais se interessou em observá-la, embora fosse inevitável.

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