Passagem

Passagem

H. estacionou o carro embaixo de uma árvore frondosa, logo depois da entrada da garagem da casa de seu amigo  o qual fora visitar. A rua estava tão tranqüila que lhe chamara àtenção, apesar de ser um sábado às 17:00; apenas um vento do outono soprava e movia os galhos mais finos das árvores e como conseqüencia as folhas que caiam rolavam pelo asfalto; e era na verdade o único som que se ouvia. Deixou a porta do carro entreaberta, pôs a perna esquerda para fora enquanto pegava o celular e uns papeis que estavam sobre o banco do carona. Dirigiu-se à porta principal da casa onde fora atendido muitas vezes há alguns anos. Pressionou o botão da campainha, não havia sinal algum de vida na casa. Tentou a segunda vez; desta feita tocou, pouco esperou e saiu. Decidiu bater no portão da garagem dado que às vezes E. jogava tênis de mesa naquele local com amigos. Seu amigo, abriu o portão que era automático, provavelmente acionando um controle remoto.

O portão foi se abrindo devagarinho, de tal forma que H. começara a ver aos poucos o que se passava lá dentro, apesar do ambiente escuro.  Havia uma grande mesa de madeira, com um candelabro (Menorah) judaico com velas que ardiam no centro daquele móvel, onde estavam sentados três homens de costas, três mulheres de frente e uma outra na ponta da mesa que não dava para ver as feições com clareza; a outra ponta da mesa era a vaga de E., o qual conduzia uma reunião. Todos homens vestiam ternos pretos, camisas brancas, gravatas de seda preta, parecendo judeus ortodoxos; as mulheres vestiam vestidos brancos, mostravam faces descoradas, quase acinzentadas. Sobre a mesa comidas, saladas, sucos e vinhos. Eles pareciam comer muito rápido, não falavam nada, como se estivessem com muita fome, e olhavam para H. indiferentes.

-H., há quanto tempo, hein?

-Pelo  menos cinco anos, se não me falha a memória. 

-E você E., está bem? 

-Tudo bem, respondeu. Repetiu a resposta olhando para o chão: tudo bem, apenas mexendo os lábios, sem som.

-Para você que está chegando agora, concluo que é seu primeiro contato, informo-lhe que aqui não existe tempo, só há o dia e a noite; a claridade transparente e o breu da escuridão.

H. se assustou e começou a achar E. esquisito, meditativo. Disse que havia estacionado o carro lá fora e voltaria pra casa antes das 19:00. 

-H., não há carro lá fora e você não tem como chegar a sua casa, pode até ir lá, mas não adianta pois eles não  vão lhe ver. É que no princípio não sabemos o que está acontecendo, zanzamos pelas ruas, parecendo-nos tudo estranho; ninguém nos ouve, não respondem nossas perguntas, é como se estivéssemos separados por uma divisória, em outra dimensão.

Por isto temos vários estágios de trabalhos em grupo, para nos acostumar e enfrentar o que não nos contam. Estas pessoas que você vê,  estão no primeiro estágio, pensam que estão comendo, mas não estão. Coloca-se comida à mesa porque elas sentem falta das refeições; é uma forma de facilitar a passagem, a transição. Esta turma vai sair daqui, inclusive eu; vamos para um segundo estágio, mais elevado; já fiz até o terceiro mas tive que voltar; mandaram-me vir por acharem que sou mais útil aqui; não sei nem quantos encontros teremos pela frente.

-Talvez não demore você encontrar um grupo em formação para juntar-se. Tenha uma boa sorte. E pediu que ele saísse.

H. saiu e ganhou as ruas, não ia procurar grupos coisa nenhuma. Grupos! Já bastara as reuniões nas empresas que trabalhara, muitas vezes improdutivas, só para os chefes imporem seus poderes. Grupos! Pensou mais uma vez consigo. Viu muitas coisas boas e ruins acontecerem. Tentou puxar da frente de um ônibus uma pessoa sendo atropelada; não conseguiu evitar; por ter visto um assassinato foi  à uma delegacia prestar queixa mas não foi visto, tampouco ouvido; Em uns bons momentos viu nascimento, casamento, cenas de amor e de sexo. Tudo podia ver, porém não interagir.

Em um parque perto de sua casa viu uma adolescente num balanço, de tranças, saias compridas, enfeitadas com babados; era muito parecida com a foto de sua ex-esposa, exposta no lado dela da cama, sobre o criado mudo. Aproximou-se dela, demorou-se, olhou-a por bastante tempo, depois saiu.

H. viu num longo espaço de tempo as coisas, as pessoas se afastarem, se distanciarem, já não conseguia distinguir quem era da família, também os seus amigos. Mais pra frente ele mesmo não era mais o H.. Era uma ideia, um ponto final, um espectro, uma célula, um ponto que reunia todos elementos; como se fosse o resumo do Universo; explosão de uma vagem que joga as sementes longe. Um Big Bang.





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