A viagem

A viagem

Aquele dia de fevereiro de 196x começou a mudar a vida de GL. Partiu de sua cidadezinha nos confins da Paraíba, na beirada do Ceará, com os olhos marejados, ainda menor de idade, considerando 194x o ano que nascera, em meados do mês de Áries, data que veio ao mundo, em direção a São Paulo. Não queria olhar para trás; atrás de si estavam seu pai, sua mãe e seus irmãos com os corações partidos. À medida que enfrentava a estrada as lembranças iam ficando mais velhas, sem embargo não esquecidas; e o futuro ia chegando aos poucos e virando definitivamente passado. A viagem fora feita na boleia desconfortável de um caminhão carregado de mercadorias, veículo cujo proprietário fora amigo da família de GL.

São Paulo era o sonho de destino de quem queria trabalhar, estudar para ganhar a vida. A maioria dos migrantes iam trabalhar em serviços pesados, de baixa remuneração. Apesar disso a Capital de São Paulo era o Eldorado no imaginário popular. “São Paulo tem muito ouro, corre prata pelo chão”, bradava Luiz Gonzaga. Mudar para o Sul, como dizíamos, era como mudar para outro país, neste sentido São Paulo guardava nítida diferença das outras cidades brasileiras, a começar pelo clima frio, a garoa fina, os sotaques europeus, principalmente italiano, a pressa ao andar nas ruas, o crescimento econômico que a levaria a condição de metrópole, cosmopolita, plural, e a maior cidade da América Latina. O que pesava na distinção de São Paulo das outras cidades brasileiras, eram suas indústrias, comércios, serviços. O migrante levaria um tempo para absorver a cultura local; muitos não absorviam, moravam em verdadeiros guetos de nordestinos nas periferias, levando uma vida como se estivessem ainda no Nordeste, no vestir, no comportamento simples, no comer, nos forrós, no despreparo para o trabalho, que a maioria se referia a região de origem como sendo “Norte”. Poucos se referiam a região como Nordeste, nordestino, eram nortistas: “sou do Norte” diziam. O poeta pernambucano Marcus Accioly, um dos representantes do movimento armorial, capitaneado por Ariano Suassuna, deu o título de “Nordestinados”, a um de seus livros de poesia. Suponho que quis dizer: destinados a ser nordestinos, como se fosse uma sina, uma condição que permeava, impregnava a alma, uma tatuagem, uma nódoa.

Para acompanhar tudo isto e crescer, GL tinha em mente que só teria sucesso se muito trabalhasse, estudasse e não ficasse em locais onde concentravam seus conterrâneos, porque aí continuaria (sem querer usar uma expressão pejorativa) “na mesma vidinha”. Análogo, quando vai-se morar no exterior e continua-se a falar a língua pátria, sem nenhum interesse em se integrar e absorver a cultura do país que emigrou. Tinha que partir para viver como os paulistanos, misturar-se com eles, mudar a coloração, como um camaleão que altera sua pigmentação para guardar sua segurança, com a vantagem de falar a mesma língua.

Meses mais tarde, em uma aula, GL deixaria escapar uma exclamação, como quando peida-se com a bunda contraída, para não fazer barulho: “ôxente”! Disse ele. Uma exclamação da mesma ordem, do mesmo significado de “uai”, dos mineiros; de “ué”, dos paulistas e cariocas. Toda classe o olhou, com olhar de desprezo; um colega foi além e disse: “ê baiano”. Ainda mais tarde em uma aula na faculdade, num sábado de manhã, comentavam sobre problemas do Nordeste. Uma colega, goiana, que sentava na primeira fileira, virou-se para trás e disse: “aqui tem nordestinos, mas alguns escondem sua origem, com vergonha”. Não era bem vergonha, era medo de enfrentar o que hoje chamam de "bulling".

Um professor de Geografia Econômica, dizia coisas incríveis, como se comentasse sobre a região, com o conhecimento de quem tinha ouvido falar, e repetia, como muitos, por terem lido “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, achando que esse conhecimento literário da região lhes bastassem. Citado mestre dizia que a farinha de mandioca era um alimento muito pobre em nutrientes, devido a isto a região tinha subnutridos, e assim por diante. Os que eram subnutridos não tinham nem farinha, idiota.

GL saíra com Cr$ 40,00 desembolsados por seu pai na hora da despedida, seguido por muitas recomendações; era pouco, mau daria para pagar os pratos feitos, os “sortidos” nos botecos ao longo da estrada e chegar ao destino de sucesso almejado, todavia incerto. Era uma aposta, um risco, uma reinvenção de GL, que algumas vezes se reinventara, tinha juventude, saúde e coragem a seu favor. Por que não mais uma vez? Tinha que deixar sua pele numa forquilha, em um toco, como fazem as cobras, para vestir uma nova roupa e assim ir em frente para ganhar a vida.

Depois de algumas horas é que o motorista e GL tiveram uma conversa mais direta, antes eram apenas: “tudo bem?” “Você quer água?” “Abra ou feche um pouquinho o vidro da janela”. Mesmo porque o motorista percebera que GL estava com um nó na garganta. “Vamos parar um pouquinho e tomar um café, disse o motorista, cansado”.

O motorista olhou para GL, depois de um gole de café, deteve-se um instante, e perguntou “por que mudar para São Paulo?” “Por que não para o Rio ou para Brasília?” GL disse que tivera muita informação de amigos e de jornais e revistas sobre a cidade, as oportunidades de trabalho e de poder estudar. Para ele não era fácil, o mais distante que tinha ido fora para Recife, onde morou um ano. O motorista exclamou “ah, você já está acostumado com cidade grande”! GL disse que sim, entretanto São Paulo era diferente, há muitos estrangeiros, principalmente italianos, embora tratassem os nordestinos de qualquer Estado de “baianos”; no Rio de “paraíbas”; em Brasília de “candangos”. O motorista concordou, abriu a porta esquerda do caminhão, sentou-se segurando a direção; e GL sentou-se e fechou a porta da direita.

Atravessavam cidades grandes e pequenas, e pegavam a estrada de novo, um caminho infindável, “parece um cordão sem ponta, pelo chão desenrolado” cantaria Sidney Miller em um festival. Paravam em lugares para comer e GL escolhia o prato mais em conta, contando de vez em quando quanto dinheiro ainda dispunha, estimando o resto da viagem. Tinha que ter dinheiro do táxi porque o caminhão ia só até o bairro do Braz; o resto era por conta de GL e sua malinha magra: um terno, calças, camisas, cuecas e alguns livros; eram seus únicos bens materiais. Tinha todos documentos e registros das empresas onde trabalhara na carteira de trabalho. Um chefe do departamento pessoal de uma empresa duvidara, quando GL disse: “tenho todos os documentos”. “Os nordestinos nunca têm documentos” retrucou o chefe de pessoal. E ele tinha razão, mais tarde GL ficaria sabendo que os migrantes recebiam uma lista de documentos para providenciar.

Em algumas pequenas cidades, nos bares e restaurantes, muitas garçonetes faziam serviços duplos, de servirem os fregueses também na cama. As doenças migravam junto com os caminhoneiros, como insetos polinizadores, ao longo da Rio-Bahia. Mais tarde, com o surgimento da AIDS, essas doenças seriam quase românticas.

O motorista parou antes de Guarulhos, em um local de muitos eucaliptos altos e de troncos grossos, porém sem o cheiro dos eucaliptos do Nordeste; sentaram-se na grama para descansar. O coração de GL batia apressado, o frio na barriga se espalhava como metástase.

A viagem durou em torno de cinco dias, findando no Braz para o motorista; no topo da Avenida Angélica, em Higienópolis, para GL.

Como disse, repetidamente, Kurt Vonnegut em "Matadouro-Cinco": “É assim mesmo.”





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