O Pastor

A mãe acordou às 5:00h, quero dizer, ela achava, pela experiência que era este horário, pois não havia nenhum relógio na casa para confirmar. Tinham ideia do horário pela claridade que despontava, pela manhã que descortinava. Chamou a filha, que algum tempo depois apareceu na cozinha, ainda de camisola, esfregando os olhos, sonolenta. Quando esta chegou já havia duas galinhas d'Angola, pintadinhas de cinza e branco,  batendo as asas no chão da cozinha de terra batida, após serem estranguladas. A mãe pegava nos pés e na cabeça da ave e puxava com força para quebrar o pescoço. Era uma violência que já acostumara, que tratava como normal; aliás, nem pensava nisto, era um ato impensado, um costume de seus antepassados. Para fazer galinha à cabidela ou a molho pardo era uma judiação maior, posto que tinha que degolar a ave e esperar o sangue escorrer em uma vasilha. 

No fogão à lenha um alguidar de barro grande com água fervendo, para mergulhar as galinhas e, ato contínuo, serem depenadas; a filha ia ajudar nessa tarefa.

Era um sábado no limiar dos anos cinqüenta, em um sítio. O pastor da Igreja Batista, viria com a esposa, convidados que foram para almoçar, ler partes e comentar trechos da Bíblia. Era uma conferência que iria até o fim da tarde. O dono da casa tinha muito apreço e respeito pelo pastor. Dava para imaginar que o pastor vestiria um paletó de linho branco já surrado, curto na parte da frente e com sobras na parte de trás, já não conseguia abotoá-lo direito e estava meio amarelado pelo tempo de uso. Era assim que o pastor se apresentava, mesmo no templo aos Domingos. O dinheiro que recebia dos fies era pouco para investir em luxos. Ele já contava quarenta e cinco anos, de altura máxima de um metro e setenta. A esposa viria com um vestido azul comprido com uma gola enfeitada de renda branca, que ela própria fizera; uma sandália de couro preta e o cabelo cacheado e repartido no lado esquerdo, de tal forma que no topo da cabeça ficava uma parte mais alta. Era uma mulher bonita, com menos de quarenta anos, magra e mais alta que o marido em uns dez centímetros, por isto usava sempre sapatos de saltos baixos, para ajudá-lo a reduzir o possível complexo de inferioridade. Tentava engravidar, sem sucesso até o momento. Uma conhecida dela aconselhara-a consultar uma benzedeira ou uma cartomante, que poderia tratar o problema da infertilidade, entretanto, ela não aceitara a sugestão; não por ela, mas pelo marido que nunca iria aceitar um deslize dessa natureza, que conflitava com suas pregações. Por ela tudo bem pois não era protestante quando casou-se; agora, devia ser fiel às crenças do esposo.

A dona da casa e a filha deixaram a cozinha por um momento e entraram na sala, cumprimentaram os visitantes com certa timidez, e convidaram a esposa do pastor para juntar-se a elas na cozinha, e assim fizeram. A esposa do pastor começou a ajudá-las enquanto conversavam sobre a família, amigos e os crentes. Falou da cobrança dos parentes sobre filhos que ela ainda não pudera ter. Ela encerrou o assunto delicado dizendo que "era a vontade de Deus."

O pastor não tinha formação teológica ou filosófica para interpretar profundamente o que estava nas escrituras. Tinha conhecimento da Bíblia pela constante leitura desse livro, pois até mesmo decorava  alguns textos para expor com eloqüencia ao seu rebanho. Tinha uma capacidade nata para convencer, como um bom vendedor que realça todas qualidades de um produto, para convencer seus clientes.

O almoço estava pronto em torno das 11:00h, pois o pastor consultara o relógio. Sentaram-se à mesa com filhos e alguns netos que passavam férias na casa dos avós. A mãe e a filha almoçaram na cozinha, acocoradas, com os pratos sobre os joelhos. De vez em quando iam abastecer a mesa, com mais arroz, farofa, feijão e galinha. O pastor comia muito e naquele momento quase não falava, quando o fazia era de boca cheia.

Para se aliviarem usavam um cercado de varas, construido a uns cinqüenta metros distante da casa, embaixo de uma árvore frondosa. Não havia mais nada confortável; usariam aquilo ou iriam ao mato.

Voltaram à sala e contavam histórias cotidianas enquanto descansavam e aguardavam o café. O pastor sugeriu separar algumas partes da Bíblia para comentar no culto no dia seguinte, que era Domingo. Fizeram várias anotações.

(A Bíblia dos Batistas não era muito diferente da católica, em grande parte era resultado da reforma protestante de 1517, quando Lutero publicou as 95 teses. Lutero queria que a igreja católica fizesse as alterações sugeridas por ele; ele não queria deixar de ser católico, ele queria reformar, seguir fielmente a Bíblia e os ensinamentos de Jesus; não concordava com a venda de indulgências promovidas pela igreja católica. A salvação deveria se dar pela fé, não por compra de indulgências. Lutero, que era um monge agostiniano, teólogo e professor, propôs as reformas, mas foi excomungado pelo papa Leão X em 1521. Então houve o cisma).

Ao final da tarde o pastor e a esposa se despediram dos donos da casa e foram de volta para a casa deles, por caminhos e atalhos distante em torno de uma légua. Mas lá pelo meio do caminho, havia uma plantação de bananeira, de folhas largas e frescas; o pastor colocou a Bíblia ao lado sobre uma pedra, pegou algumas folhas, forrou o chão já coberto de capim seco e improvisou uma cama, sobre o olhar desconfiado da mulher. Fizeram o que é mais natural de se fazer, sem preocupação, sob a luz dourada do por do sol.

Semanas depois a mulher sentiu sinais de gravidez.

 




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