A seca de 1958


A seca de 1958
Tia Apriginha (irmã de minha mãe Lucia Lins), Trajaninho seu marido, o qual nós crianças o tratávamos de tio, por ser casado com essa minha tia; e toda família, chegaram lá em casa em Marizópolis com móveis, roupas e ferramentas de trabalho de meu tio que era ferreiro. Colocaram tudo em um espaço que seria mais tarde uma garagem, e também no quintal. Foi em 1958, ano de uma das maiores secas que os Estados da Paraíba, Rio Grande do Note, Pernambuco, Ceará, enfrentaram. De repente a quantidade de moradores de nossa casa mais que duplicou.
Naquele ano muita gente migrou para o Sudeste, principalmente para São Paulo e Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida. Mas essa gente não era treinada, trabalhava na agricultura de subsistência, em biscates, não tinha habilidade para concorrer com os trabalhadores das indústrias em São Paulo e no Rio, cabendo-lhes quando muito, o trabalho duro de servente de pedreiro na construção civil. Enfrentavam temperaturas baixas, sem roupas apropriadas, em São Paulo que, nessa época, mais do que hoje em dia, era muito fria e garoenta. A ilusão cantada em versos por Luiz Gonzaga que “São Paulo tem muito ouro corre Pratas pelo Chão” não passava de um sonho para a maioria.
O governo Juscelino criou frentes de trabalho com construção e manutenção de estradas, barragens, para ocupar, evitar pilhagens, dessas pessoas, na tentativa de mantê-las nos locais de origem, para conter a migração que causava sérios problemas sociais em outros Estados. A construção de Brasília já começara e muitos viraram “candangos” lá nas planícies goianas, onde extensa área do cerrado fora desmatada para construção da futura capital.
Meu pai era açougueiro no Mercado Municipal e as sobras de carnes eram levadas pra casa, para alimentação de todos nós. Não era onde comia um comiam dois; era onde comiam cinco comiam dez.
Para nós era muito divertido ter nossos primos por perto, tínhamos idades equivalentes e brincávamos muito.
Depois de alguns meses lá em casa meus tios mudaram para um local chamado de Vila Nova, situada naqueles lados do cemitério de muros caiados de branco. A maioria das casas desse novo local eram de madeira. Meu tio Trajaninho finalmente teria sua oficina montada e começaria efetivamente a trabalhar. Muitas vezes eu ficava vendo-o forjando metais, transformando-os em objetos: gradis, portas, ferraduras, foices, roçadeiras (parecia um Blacksmith inglês: alto, galego de olhos claros, de avental sujo de carvão), soprando o carvão com um fole, malhando ferros incandescentes sobre a bigorna imóvel, emitindo sons que se escutava à distância; tambor de óleo queimado que ele enfiava a peça já moldada para temperar, e uma fumaça cinzenta subia para o teto. Era um trabalho artesanal, duro, milenar; hoje quase em extinção.
Quando eu voltava pra casa já era escuro, nem me arriscava a olhar para o cemitério, com medo das almas vestidas de branco, de olhos fundos, de falas com o som ecoado, do outro mundo, que certamente me olhavam, que me causavam arrepio na nuca; consequência das histórias que contavam nas calçadas.
Mas 1958 foi um ano de aprendizado, e quando se aprende à duras penas não esquece-se.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Aracati & Outros/as

Família Lins de Albuquerque