O Amor nos Tempos de Softwares

O Amor nos Tempos de Software
Sergio saiu apressado de um prédio na Avenida Paulista, onde trabalha em um escritório de consultoria na área de software. Tem trinta e dois anos, alto, magro, muito boa aparência, vestia terno azul-marinho, camisa branca e gravata azul-claro. Vestira-se mais formal porque estivera em uma reunião com cliente. Cursou a faculdade de engenharia elétrica, em uma grande e famosa universidade pública de São Paulo. Apesar de sua pouca idade, a função que ocupa na multinacional é de gerência; lidera um grupo de empregados que faz implantação e customização de softwares, licenciados pela empresa.
Passou em frente ao Hospital Santa Catarina e seguiu em direção ao Shopping Páteo Paulista, na Rua 13 de Maio. O sinal de pedestre estava fechado, ele aguardava o sinal verde para atravessar pela faixa zebrada. No sentido contrário Júlia, aguardava o mesmo sinal abrir. Ela é secretária executiva, fluente em Inglês e espanhol; liga para o exterior e acerta agendas dos chefes para reuniões, palestras e convenções, de uma empresa multinacional europeia da área financeira, endereçada na Alameda Santos. Morena clara, alta para os padrões brasileiros, cabelos pretos cobrindo os ombros, bem penteados, rosto comprido, olhos escuros e redondos; muito bonita, aparenta ter vinte e cinco anos. Traja blazer preto; por baixo do blazer uma blusa branca com decote discreto; calça jeans azul levemente desbotada, já que a sexta-feira é um "casual day"; sapatos salto baixo da mesma cor do blazer. Também usa uma bolsa a tiracolo que combina em cor com os sapatos. Estudou Psicologia numa universidade particular, mas de boa qualidade. Aguarda ansiosa promoção para uma vaga, em nível de gerência, na área de RH, enquanto trabalha na secretaria. Os dois trocaram olhares, à distância. Bom, isto é normal, sem compromisso; flertar e seguir em frente, sem mais. Mas no caso desses dois, quando o sinal abriu, cruzaram no meio do caminho e trocaram olhares demorados, penetrantes e mostraram um leve sorriso nos lábios. Ficaram tocados, mas continuaram andando cada um para seu lado. Era hora do almoço, ela já almoçara e estava retornando para o escritório da empresa. Ele saíra para almoçar mais tarde, por causa da reunião com um cliente, para discutir problemas de atrasos e ajustes na implantação de um software. Enquanto caminhava em direção ao shopping center, antes de ver aquela moça, não se desligara dos problemas tratados na reunião. Agora, depois daquela cena, trocou as preocupações profissionais por algumas indagações: “será que vou reencontrar aquela moça amanhã nesta mesma hora?” “Será que ela almoça com freqüencia no shopping center?” Da parte dela também havia as mesmas dúvidas e expectativas em relação a ele. Em uma metrópole como São Paulo é difícil haver um reencontro entre duas pessoas que casualmente se olharam e nunca conversaram. Devido ao volume de obrigações na empresa, Julia pedia em alguns dias da semana, comida pelo sistema de entrega e almoçava na copa que a empresa mantinha, equipada com aparelho de micro-ondas, geladeira, mesa e cadeiras. Outro inconveniente é que Sergio viajava com freqüencia, tanto para alguns Estados no Brasil como para o exterior, normalmente Estados Unidos, onde havia a matriz da empresa em Menlo Park(CA). Caso Julia conseguisse ser promovida, para ocupar a vaga no RH também começaria a viajar, pois a empresa tem plano de carreira e avaliações constantes dos empregados e tudo isso tem que estar em sintonia com os modelos e normas padronizadas globalmente pela empresa.
Depois de passados três meses, quase já haviam se esquecido das feições um do outro; restava apenas uma vaga visão desfocada, como quando se olha uma montanha num dia de forte neblina.
Contudo, aconteceu de um dia os dois se reencontrarem em um café daquele mesmo shopping. Sergio fora almoçar com um colega e decidiram tomar um café expresso e lá estava a moça sentada à uma mesa com uma xícara de café, acompanhado de uma fatia de bolo, e de cabeça inclinada baixando e-mails pelo celular. Sergio pediu licença ao colega e se dirigiu à mesa a qual Julia ocupava. Ela ficou surpresa com a presença dele e de ele tê-la reconhecido. Afinal fora apenas um encontro de olhares, apesar de marcantes e profundos.
Ele disse: “oi, tudo bem? Não sei se você se lembra de mim. Eu.....” e sem que ele desse mais explicações, ela disse: “sim, lembro-me de você, já faz algum tempo, não?”
Ele respondeu: “sim, faz alguns meses mas eu sempre acreditei que um dia nos encontraríamos. Tanto é que vim algumas vezes aqui lhe procurar no local dos restaurantes e lanchonetes, na praça de alimentação.” “A propósito, como é seu nome mesmo?” Ela respondeu: “Julia” e ele disse, imediatamente, não dando tempo para ela perguntar o seu. “O meu é Sergio.”
Como Sergio havia deixado seu colega a lhe esperar, pediu licença a Júlia para avisá-lo de que não retornaria ao escritório com ele e que ia continuar conversando com com a moça, depois, quando retornasse ao escritório lhe explicaria o motivo, com mais detalhe. Assim foi feito, e voltou a conversar com Júlia.
Após Júlia tomar o café e pagar a conta, os dois saíram conversando em direção a Avenida Paulista. Atravessaram a rua 23 de Maio, após esperar o sinal verde, que sempre demorava a abrir, mesmo depois de apertarem repetidamente o botão no poste; dobraram a esquina a direita, continuaram andando pela Paulista. Alguns moradores de rua dormiam, protegendo-se do frio com cobertores com aparência de muito uso, vigiados por dois cães, presos por coleiras e cordas. Ele disse: “incrível como esses animais são pacientes e fies aos seus donos.” Ela concordou e disse: “não sei se você já viu um morador de rua, que tem uma barraquinha dessas de acampar, na Praça Osvaldo Cruz. Ele prende gatos com coleiras e cordas, e gatos não gostam de ficar presos, é um bicho livre, independente.”
Ele disse: “é uma judiação.”
Sergio perguntou a Julia se ela trabalhava alí por perto, ela respondeu que sim, na Alameda Santos, mas que utilizava os jardins da Casa das Rosas como passagem para chegar ao prédio do escritório. Ele disse que já havia almoçado algumas vezes lá na Casa das Rosas e que freqüentemente levava clientes para beber café naquele local, que é muito tranqüilo e agradável. Ela disse: “que bom estamos por perto!”
Resolveram andar um pouco mais pela avenida em direção ao MASP, chegando lá, no vão do museu, havia um grupo de mulheres com os seios expostos, com os corpos pintados, parecendo índias, apesar de algumas mulheres terem peles brancas, com frases de ordem do movimento feminista. Havia muitos curiosos em volta delas tirando fotos, com celulares. Uma delas estava sendo pintada por uma companheira, com a pintura de uma flecha vermelha na barriga, em direção ao umbigo; passado pelo umbigo, em direção ao ventre e escrito: “esta vagina é minha”. Sergio não duvidou que fosse dela, contudo entendeu o que a mulher queria dizer com aquilo. Júlia, observou curiosa. Pensou para si: concorda em parte com o movimento feminista, porém não aprova a politização do movimento, com a interferência de partidos políticos, das igrejas e de ideologias, que de muitas vezes até se locupletam com um movimento que poderia ser puro, e foi além pensando: o aborto é uma questão da mulher, a ser tratada pela mulher e um médico, porque envolve riscos contra saúde.
Continuando pela Paulista, os dois observavam os vários tipos de rostos, de cor de pele, resultante de miscigenações. Sergio comentou que, em sua opinião, “essa avenida é microcosmo do Brasil e do mundo”, Julia concordou orgulhosa.
Já na hora de voltar ao escritório, Sergio perguntou se eles não poderiam almoçar no dia seguinte, lá na Casa das Rosas. Ela respondeu que não, porque o advogado da empresa marcara uma reunião, para explicar as alterações da reforma trabalhista e que achava que comeria sanduíche na hora do almoço, à mesa de reunião. Acrescentou que participaria da reunião não por obrigação, não como pessoa da área de RH porém, com efeito, para mostrar interesse, já que se candidatara a uma vaga naquela setor.
Eles trocaram os números de Whatsapp, para combinarem um encontro. No dia seguinte trocaram algumas mensagens pelo aplicativo, mas não marcaram nada. A esperança de Sergio, agora, era no fim de semana; quem sabe um cinema, um chope? Ele estava muito interessado nela, entretanto ela tinha um segredo que era difícil revelar nesse início de relacionamento, mas não podia também esconder por muito tempo. Pensava que deveria já no próximo encontro contar tudo, mas tinha muita dúvida de qual seria a reação dele. Ela tinha no escritório uma colega que era mais sua amiga do que simplesmente uma colega, era casada, tinha filhos, de confiança, a quem ela confidenciava muitos segredos. Poderia pedir a opinião dela; de Miriam.
Para sorte de Júlia, Sergio teve que viajar para o exterior, para sede da empresa em Menlo Park. Foi uma viagem não programada, para acompanhar o controller da empresa, o qual ia fazer uma exposição dos resultados financeiros do trimestre que se encerrara e tinha que ter alguém para falar do desempenho técnico de alguns contratos, que apresentavam prejuízos. Era uma reunião importante porque haveria representantes das operações de alguns países da América Latina.
A comunicação entre Sergio e Júlia, nesse período, fora feita pelo Whatsapp ou pelo Skype.
A Júlia conversou com Miriam, que já sabia há algum tempo dos detalhes de seu segredo; queria só a opinião dela quanto ao tempo de contar ao Sergio.
A Miriam disse: “Júlia, eu não contaria nada agora, deixaria a coisa andar um pouco mais. Você não estaria sendo desleal, estaria sendo precavida. Porque você também não sabe o que há do lado dele; de repente ele pode ter uma coisa mais complicada que a sua; esperemos que não.” Júlia pensou e disse: “vou ter que administrar muito bem isto para não causar desconfiança.”
“Outra coisa Júlia,” Miriam acrescentou: “seus pais precisam saber; mesmo porque você ainda não está separada oficialmente. Eles nem conhecem Sergio. Não é que eles mudariam algo, porque você é maior de idade, independente e responde pelos seus atos. É um apoio moral,” completou.
Apesar de que, Miriam, disse a Júlia, “se eu deixar para contar só depois que eu apresentar Sergio aos meus pais, vai ser tarde; ele não me perdoaria.”
Para quem está lendo, devo dizer que o segredo de Júlia, já revelado acima em poucas palavras pela Miriam, embora seja jovem, Júlia, oficialmente, é casada e está no final de um processo jurídico de separação. Não tiveram filhos, o que facilita um pouco, porem há bens: apartamento, carros; dinheiro investido pelos dois. Não é uma separação litigiosa, mas de qualquer forma é desgastante. Ela e o marido chegaram a conclusão que devessem se separar, não estavam se entendendo por questões de gênio, de teimosia, de ciumes. Fizeram o possível, viajaram juntos, ele ficou algumas semanas na casa dos pais, foram ao psicólogo, mas não teve jeito.
Sergio voltou da viagem em um Domingo à noite e quis marcar um encontro com Júlia. Não foi possível no próprio Domingo pois ele estava muito cansado da longa viagem, do fuso horário e já era noite. Marcaram para segunda feira, após o expediente. Não precisava ser um lugar especial, mas um local para tomar um café ou um sorvete e conversarem.
Foram ao Conjunto Nacional e sentaram-se à uma mesa em um local onde servem café e pequenos lanches. Pediram só café. Júlia perguntou: “ e aí Sergio, como foi a viagem e os trabalhos em Melon Park?” Sergio respondeu: “a viagem foi boa porém a reunião, não. Houve muita discussão sobre os prejuízo de alguns contratos. Eu respondi pelos problemas técnicos e Airton, o controller, pelos resultados financeiros. Procurou-se muito os culpados pelos resultados negativos. Muita tensão. Você sabe que quando o filho é bonito, todos querem ser o pai, não é? Mas no caso o filho é feio!”
Naquela reunião o controller fora bombardeado de perguntas e de críticas, enquanto apresentava o trabalho em um quadro à frente dos presentes. O vice-presidente disse: “por que você não senta com o controller do país “x” para ver o que eles estão fazendo por lá; os resultados apresentados por eles são exemplares.”
O controller do Brasil, se sentiu humilhado. Ele tinha certeza que não era aquilo, ele estava sendo usado para ajudar a derrubar Raul, o country manager da unidade brasileira; o que poderia acontecer nas semanas seguintes.
Alguns meses depois soube-se que o controller e country manager do país “x” ,haviam apresentado resultados irreais. Reconheceram vendas sem o devido amparo de contratos sólidos, exigidos pelas normas contábeis. Contudo, o vice-presidente não teve a humildade de pedir desculpa ao controller do Brasil.
Ouvi dizer que o country manager vai ser despedido,” disse Sergio. “Foi admitido para trabalhar no terceiro trimestre; caso cumprisse as metas, continuaria na empresa; caso contrário, não. A meu ver foi um bode expiatório, admitido para justificar os resultados que já se sabiam serem ruins.”
O country manager não fora despedido. Sergio soube, depois de alguns dias, que tramavam a saída dele para colocar um ex-diretor de vendas, que estava meio encostado, para assumir seu lugar; no entanto, a manobra não dera certo.
Sergio perguntou: “e você está bem?” Júlia respondeu que sim. E acrescentou: “participei da reunião sobre a reforma trabalhista. Foi muito boa mas lá vi que há também outra pessoa interessada na vaga do RH. Vai ser uma boa briga. Não me importo em brigar pela vaga, faz parte, mas pensei que não haveria concorrentes; continuando ela disse: “ o que me ajuda um pouco é minha fluência em Inglês e Espanhol; o que não me favorece é a falta de experiência em Recursos Humanos.” Em complemento ela disse: “a concorrente tem a vantagem de ter experiência em RH em uma empresa onde trabalhara; e, também dizem que ela tem um caso com o country manager da empresa atual.” Aí disse em tom sarcástico: “ás vezes coisas que não estão no curriculum podem pesar em uma promoção.”
Encerrando o assunto ele disse, sem entrar no mérito e sendo político: “bom para empresa que tem empregados nos seus quadros que podem ser aproveitados; de outra forma teria que admitir pessoas do mercado.”
Mudando de assunto, Sergio disse: “sabe que tive saudades de você, esperei muito por este momento.”
Júlia fixou seus olhos escuros e redondos demoradamente nos dele, e sorrindo respondeu que o mesmo acontecera com ela. Neste momento Sergio pois sua mão sobre a mão dela e apertou levemente.
Júlia se lembrou da conversa que tivera com Miriam, e de repente desmanchou o sorriso. Sergio percebeu sua rápida mudança de humor e perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu que sim, e fez o que a mulher sabe fazer muito bem; e que o homem normalmente se atrapalha, inventou uma estória sem deixar desconfiança.
Após o café, os dois entraram em uma livraria e compraram livros. Era o que eles sempre tinham o hábito de fazer, quando passavam por aquele local. Às vezes só liam as orelhas ou os prefácios de alguns livros; os livros e o ambiente davam-lhes prazer.
Nessa mesma semana Anselmo, o advogado que trata do divórcio, ligou para Júlia e para seu ainda marido, para uma reunião para informar o andamento dos trabalhos. Ficaram de se encontrar no escritório do advogado na Lapa, bairro onde os dois moraram, enquanto juntos.
O quase ex-marido, cujo nome é Henrique, atrasou a entrega de alguns documentos solicitados pelo advogado, por essa razão tiveram que replanejar os trabalhos. Júlia ficou com a impressão de que Henrique atrasara a entrega dos documento de propósito; mas não disse nada. Só pensou que poderia ser influência da mãe dele, pois ele a atendia feito um cachorrinho tudo que mãe lhe pedia. É como se a sogra a culpasse pela separação do filho.
Os dois saíram juntos do escritório do advogado. Henrique a convidou para um café, mas Júlia não aceitou, disse que ainda teria que voltar para o escritório.
Essa situação complicava a vida de Júlia pois ela teria que empurrar com a barriga a revelação do segredo mais pra frente ou contar tudo logo, pronto e seja o que Deus quiser.
Quando voltou ao escritório, no dia seguinte, tornou a falar com Miriam e lhe contou tudo que passou. Míriam disse: “agora, diante deses fatos novos, eu contaria para ele.”
Os pais de Júlia moram no Ipiranga e ela fora lá fazer-lhes uma visita. O que ela sempre fazia, assim que tinha tempo, porém desta vez tinha algumas informações adicionais para dar-lhes.
Após o expediente, Júlia dirigiu-se à linha verde do metrô, estação Brigadeiro.
Alguns vidros da estação estavam quebrados devido a atos de vandalismo, defendidos por alguns como protesto ou manifestação.
Desceu rapidamente as escadarias, passou o cartão pré-pago na leitora e embarcou em direção a estação Ipiranga. Achou um assento vago, sentou-se, abriu a bolsa, pegou um livro e começou a ler. Contudo, não se concentrou devido a uma conversa paralela, talvez uma conversa, embora em tom baixo, viesse de longe, de duas mulheres de um pouco mais de quarenta anos. Fingiu que estava lendo. Uma delas disse: “.......às vezes eu fico no sofá com meu marido, vendo um programa de televisão, por longo tempo e não trocamos abraços, nem beijos; nem mesmo um olhar mais demorado.” A outra disse: “mas por quê, por causa das crianças?” A outra respondeu: ”não, mesmo com as crianças dormindo; muitas vezes eu evito tomar a iniciativa, e ele também não toma, fica nisso: um esperando pelo outro.” A outra disse: “eu, minha amiga, tomo a iniciativa sim; se eu não fizer isso outra vai fazer em meu lugar.” e completou: “está cheio de mulher querendo tomar o marido de outra, fica esperta.”
Chegou a estação que uma delas ia descer. Despediram-se com um até amanhã e beijos. Júlia que passara por problema semelhante, pensou um pouco e voltou a ler, embora por pouco tempo, pois a estação Ipiranga estava chegando.
Os pais de Júlia ouviram atentamente o relato da filha sobre o processo do divórcio e sobre o início de relacionamento com Sergio, após terem conversado sobre outros assuntos rotineiros.
A mãe de Júlia, Helena, junto com seu pai, Artur, disse: “minha filha, você pode decidir essas coisas com o bom senso que sabemos que você o tem; pouco nós podemos fazer, você bem sabe. Mas você tem nosso apoio moral e financeiro se você destes precisar.” Enquanto ela falava seu pai assentia com movimentos da cabeça. “Em caso de qualquer problema você sabe que estamos aqui”, reforçou. Júlia, que é filha única, agradeceu a compreensão dos pais e voltou a falar de outros assuntos, perguntar pelos tios, pelas tias, e do gato vira-latas, grande, rajado, que atende pelo nome de Mufasa, que insistia em passar o rabo pelas suas pernas, miando e querendo atenção.
Como já era tarde Julia decidira dormir na casa dos pais, após insistência deles, e foi trabalhar no dia seguinte diretamente de lá. Ela mantinha roupas em um armário de seu antigo quarto, para essas ocasiões.
O processo de preenchimento da vaga do RH mudara, o country manager da empresa decidira contratar uma pessoa do mercado. Deve ter percebido algum ruído dos empregados ou ter sido aconselhado por seus auxiliares diretos, que promover uma das duas empregadas poderia causar mais problemas que solução. Assim já admitiria uma pessoa preparada, com todas exigências para o cargo.
A princípio Júlia ficara chateada, mas após pensar mais profundamente concordou; também pensou que se fosse a Martha a escolhida, seria problemático, porque no fundo havia conflitos de interesses, aja vista relacionamento muito próximo do country manager; caso fosse ela, a empresa teria que investir pesado em sua formação em RH.
A pessoa mencionada acima, colega e concorrente de Júlia para vaga no RH, tem nome alemão, é Martha von Etwas, 27 anos, olhos verdes claros, alta e magra, mostra muita habilidade em comunicação. Trabalha internamente na área de venda de produtos financeiros. Informa o country manager sobre tudo que ocorre no interior das baias; ela é os olhos dele na empresa. Os empregados medem as palavras quando conversam com ela; pisam em ovos, ou então quando querem que um assunto chegue ao conhecimento dele, comentam com ela.
Correu uma conversa outro dia, na hora do cafezinho, que ela e o country manager ficarão noivos. Ele é, o que se chamou no passado, um solteirão, um rapaz velho; aliás, bem mais velho que ela.
Hoje Júlia decidiu contar tudo ao Sergio, em vista de o processo de divórcio estar demorando. Ligou convidando-o para irem comer pizza. Como era sexta-feira poderiam conversar até mais tarde, sem a preocupação de acordarem cedo no dia seguinte. Deixaram os carros em casa pois sabiam que iam beber.
Foram a uma pizzaria na Alameda Santos. Beijaram-se levemente nos lábios, sentaram-se à uma mesa. Sergio perguntou o que ela gostaria de beber, ela respondeu rapidamente, quase sem pensar: um vinho, um vinho tinto. Sergio riu e disse: “que decisão rápida!” Ela lhe sorriu, um sorriso econômico, para lhe agradar. Sergio sentiu uma certa apreensão no comportamento de Júlia, mas ficou calado. Depois de escolherem, pediram o vinho, o garçom mostrou a garrafa com o rótulo voltado para Sergio, pois um pouco de vinho para Sergio provar. Sergio agradeceu e disse ao garçom para servir o vinho normalmente, e o garçom preencheu um pouco mais de meia taça para cada um. A garrafa de vinho já estava quase vazia quando a pizza chegou. Enquanto comiam Júlia disse, agora mais a vontade sob o efeito do vinho, que tinha um assunto muito muito importante para falar para ele. Ele já pressentira, mas o que seria? Será que ela iria desistir da relação com ele? Muita coisa passou pela sua cabeça naquele mínimo espaço de tempo.
Ela disse quase gaguejando: “eu sou casada, isto é, quase separada, na verdade em processo de divórcio. Eu moro em um apartamento e ele em outro, há quase um ano. Mas Henrique, o nome dele é Henrique, tem demorado a fornecer algumas informações que o advogado lhe pedira. Acho que de propósito, desconfio até mesmo que por interferência da mãe dele.” Enquanto ela falava Sergio parou de comer e só bebeu; não sabia o que dizer.
Continuando Júlia disse: “eu ia te contar antes, mas aconteceram muitas coisas, não estava segura, não encontrei uma ocasião, enfim, não deu.”
Sergio ainda continuava sem dizer uma palavra, e sem comer. Para ele não era nada demais continuar o relacionamento com Júlia nessas condições, até que o divórcio fosse resolvido. O que mais lhe chamou atenção e o preocupava era ela ter mencionado uma certa resistência do marido, “esse tal de Henrique.” Pensou se valeria a pena continuar com o relacionamento, mas ainda não externara esse pensamento para Júlia.
Nesse tempo que conheceu Sergio nunca o convidou para ir ao apartamento dela; ele também não o fez pois morava provisoriamente com seus pais, enquanto seu apartamento, comprado usado, era reformado. A verdade é que ela não lhe deu chance nem de ir ao seu apartamento nem a outro lugar onde tivessem uma relação mais íntima; ela queria ver resolvido, com prioridade, o divórcio.
Os dois saíram do restaurante à procura de um táxi. Ainda em frente a pizzaria, pararam, se abraçaram e se beijaram demorada e calorosamente. Sergio sugeriu que eles fossem em um só táxi. Deixaria ela em frente ao prédio que ela mora, e ele depois seguiria para sua casa; e assim fizeram.
Quando Sergio viajou para São Francisco, participou de uma reunião com um “head hunter” de uma empresa com sede em Melon Park e que tem uma divisão no Brasil. Saíra do Brasil com essa reunião já acertada e com o nome do head hunter que ia entrevistá-lo. A reunião foi feita à noite, no restaurante do hotel que ele estava hospedado. A proposta da empresa era para ele trabalhar um ano na sede e retornar ao Brasil para assumir um cargo de diretor. Era uma boa proposta naquela empresa que licencia, customiza e faz manutenção de softwares.
Nestes dias Sergio foi informado que ele fora selecionado, e a divisão brasileira o convidara para uma reunião em seu escritório na região do Brooklin, em São Paulo. Ele tinha que falar urgente com Júlia dessa nova situação, antes da reunião. Ligou para ela e marcaram encontro para aquele mesmo dia, após o expediente.
No encontro Sergio contou toda história e perguntou se ela gostaria de ir com ele, já que ele ia alugar um apartamento, pago pela empresa. Prontamente Júlia respondeu que não. Ela pensou para si, que não estava tão segura, devido ao pouco tempo de relacionamento e até achou precipitado ele fazer essa proposta. Além do mais ainda não sabia se o divórcio ia ser resolvido tão rápido. Sergio disse que a nova empresa ia lhe dar um prazo para preparar tudo, no máximo três meses, inclusive o visto americano. Ela também argumentou que tinha o emprego dela aqui; e lá, quando conseguiria trabalhar?
Na realidade Júlia pensava seriamente em fazer um curso de pós-graduação em Recursos Humanos; era a área que ela queria trabalhar, e ia lutar por isto.
Pensava também em trabalhar em Portugal, país que visitara algumas vezes e que se encantara. A beleza das cidades, a limpeza, a culinária, o povo cordial, tudo isto a conquistara. Todavia, embora falando a mesma língua, com algumas diferenças, como seria trabalhar lá? Pensava.
Sergio estava atribulado providenciando a papelada: saída da empresa atual, entrada de documentos para registro na nova empresa, visto de trabalho, etc.
Esse tempo também o fez pensar com frequência nas adversidades que iria enfrentar lá nos Estados Unidos: cultura diferente, horário de trabalho de trabalho “9 to 5”, como canta Dolly Parton, comer sanduíche à mesa de trabalho, relação hierárquica bem diferente da do Brasil. E, a princípio, sozinho.
Devido a correria se comunicava com Júlia pelo Whatsapp e mesmo assim com frequência cada vez menor. Ligou para Júlia para marcar um encontro, mas ela lhe disse que não podia pois tinha um compromisso; e não lhe deu mais detalhes. Tentou mais uma vez, no dia seguinte e percebeu que ela estava insegura quanto ao relacionamento deles.
Sergio disse: “Júlia, não vamos fechar as portas, você tem a pendência do divórcio e eu, o tempo que vou morar fora. Poderíamos manter contato nesse período que não é tão longo. Eu certamente terei uma ou duas viagens ao Brasil e poderemos nos encontrar.” Julia não disse nem que sim nem que não, apenas disse: “estou pensando, Sergio.”
Sergio queria muito continuar com Júlia e iria fazer o máximo para não perdê-la.
Um dia antes da mudança para Menlo Park, Sergio ligou para Júlia e a informou que ia viajar no dia seguinte à noite, que era um sábado, insinuando que haveria espaço para um demorado encontro com ela. Ela o atendera amavelmente, e disse que ia acompanhá-lo até Cumbica.
Sergio se sentiu flutuando, como se já estivesse voando sobre as nuvens, de tão feliz!
Sergio já estava há três meses em Melon Park. A vida é corrida, contudo caminhando bem, algumas dificuldades iniciais, mas quase todas superadas. Habita um pequeno apartamento, todavia tem tudo que ele precisa; é uma kitinette, alugada com os móveis, a quatro quarterões do escritório; faz o trajeto a pé, quando não chove.
Fins de semana aproveita para passear em São Francisco; aos domingos é comum almoçar espaguete com frutos do mar, no Pier 39. Por enquanto ainda não fez muitas amizades, conheceu argentinos, chilenos, mexicanos; pessoas que têm cultura mais próxima do Brasil e por isso mais fáceis de se relacionar. Com os nativos americanos o relacionamento é profissional, frio, fica restrito ao ambiente de trabalho.
Continua um bom relacionamento com Júlia. Ela está lhe colocando a par do processo de divórcio, que começou andar mais rápido, dos projetos dela na empresa e particular. A comunicação é feita pelo skype e pelas redes sociais. Sergio informou para Júlia que é bem provável que não fique todo tempo combinado com a empresa para morar em Melon Park; acredita que pode voltar antes em vista de alterações de alguns projetos na unidade brasileira.
Júlia anda pesquisando um curso de RH nas universidades, que teria a duração de mais de dois anos. Pensa em um curso de mestrado. Ela quer se garantir, além de melhorar seu curriculum, em caso de algum problema, poderia dar aula. Contudo, vai aguardar a assinatura do divórcio.
Outro dia Júlia estava conversando com Sergio e disse que está levando uma vida celibatária, até que se resolvam tudo, e está dando graças a Deus ele não está em São Paulo, porque seria quase incontrolável não terem contato íntimo. Caso isso acontecesse, ela se sentiria vigiada pelo marido, como se ele estivesse presenciando ao ato.
Passou-se uma semana e Sergio ligou para Júlia informando que, numa reunião, fora decidido que ele ficaria mais cinco meses e, após esse período, retornaria definitivamente para São Paulo. Nessa reunião ele negociou e foi aprovado a vinda dele para São Paulo ficar por aqui uma semana, e retornaria para Menlo Park para completar o prazo.
Antes da vinda de Sergio, o advogado entrou em contato com Júlia informando que em menos de uma semana os papeis estariam todos prontos para serem assinados. Não havia notícia melhor que essa, pensou Júlia. Imediatamente fez Sergio saber e no dia seguinte Júlia contou as novidades para sua colega e confidente Miriam.
Ela disse:”Miriam, logo serei uma mulher livre!” Miriam respondeu alegre:”que legal! Conte-me tudo amiga!” E Júlia contou tudo.
Na semana que Sergio ficou em São Paulo, os papéis do divórcio foram assinados. Eles marcaram de se encontrar na Avenida Paulista em frente ao Masp, dali iriam a um restaurante para comemorar. Ela vinha da Praça Oswaldo Cruz e ele da Estação Consolação do metrô. Eram lados opostos, e se falavam, enquanto andavam, pelo celular. Ela disse “aonde você está Sergio, não estou lhe vendo.” Ele disse “a um quarteirão do Masp”; ela disse “eu vou começar a correr”; ele disse “eu também.” E correram, e em poucos minutos, bem em frente ao Masp, se encontraram, ofegantes, o suor descia pelas faces de ambos. Abraçados, Sergio a suspendeu do chão e a fez rodar junto com ele a beijou na boca demoradamente, ela desmanchou-se em lágrimas, que parecia terem sido guardadas para aquele momento. Eram lágrimas de alegria e de desabafo.
O abraço e o beijo com total entrega a fez se apoiar nas pontas dos pés e ele curvar o pescoço e os ombros para envolvê-la o máximo que pudesse. Ele sentiu os seios pontudos, entumecidos e quentes pressionarem seu peito. Essa sensação o fez pensar em mudar de ideia quanto ao jantar em um restaurante e minutos depois proporia irem ao apartamento dela, já que seu apartamento continuava, por ser um imóvel antigo, em reforma que, considerando a proporção, se arrastava como a reforma de uma catedral. Uma hora era falta de dinheiro; outra, era que o arquiteto que coordenava os trabalhos, sumia de vez em quando, para trabalhar em projetos mais rentáveis.
Os dois não falavam nada e não precisavam; qualquer palavra era insignificante diante dos atos, dos olhares, do contato estreito dos corpos, numa linguagem que não carecia de ser traduzida, dificilmente se conseguiria dizer tudo, faltaria sempre algum detalhe.
Era final de tarde dos últimos dias de verão, quase início do outono; o vento já começava a soprar um pouco frio, típico da nova estação, no espigão da Paulista.
Sergio perguntou a Júlia se “não seria melhor passar em uma adega, comprar vinho, presunto, queijo e levar pra casa dela”; assim ficariam mais a vontade. Ela pensou um pouco, ainda ligada ao processo do divórcio, como se tivesse que dar explicações ao ex-marido, mas logo se refez e respondeu que “não via nenhum problema” naquela proposta.
Ligaram para a Uber, o carro chegou rápido e logo estavam no apartamento de Júlia. Sergio abriu uma das duas garrafas de vinho: a primeira da uva Cabernet Sauvignon; a segunda, que abriu mais tarde, da uva Carmenère; colocaram os pedaços de queijo e fatias de presunto em um prato. Júlia tinha um pão italiano redondo, fatiado, ainda fechado na embalagem e fizeram o que o “Monsenhor Quixote” e seu amigo Sancho, costumavam fazer, no livro de Graham Greene: beber vinho com pão, presunto e queijo.
Fizeram amor no tapete da sala e dormiram profundamente; primeiro, devido ao efeito do vinho; segundo, por terem relaxado depois da transa demorada.
Após um rápido café da manhã, com pão com manteiga e café puro, Sergio apressou-se em sair pois teria que estar no escritório da empresa às nove horas e já eram oito.
Júlia ficara sozinha em casa, não ia para o escritório nesse dia pois estava compensando horas extras de trabalho. Pegara um livro e não conseguira se concentrar na leitura. O pensamento no ex-marido ia e voltava insistentemente, rápido como a luz, ao virar uma página, ao fim de um capítulo e início do outro, em uma teimosia como a água que se infiltra em rachaduras ou na terra seca. Estava tudo resolvido quanto ao divórcio, porém era difícil esquecer completamente, carecia de algum tempo para maturar, afinal de contas foram alguns anos de convivência.
Sergio acertou em reunião os detalhes da volta para Menlo Park/CA, para cumprir o restante do contrato e voltar em definitivo para o Brasil.
Era um treinamento para assumir futura posição de alto executivo na unidade brasileira. Lá no escritório de Menlo Park incumbiram-no da tarefa de tratar de problemas e ajudar as unidades sediadas na América Latina, podendo viajar para países da região, se necessário.
No Brasil, dando sequência ao que planejara, Julia matriculou-se em um curso de mestrado na área de recursos humanos. Sentindo-se segura no relacionamento com o Sergio, está sempre se comunicando com ele pelas redes sociais.
Outro dia, caminhado pela Avenida Paulista, a procura de um restaurante para almoçar, avistou seu ex-marido que vinha a passos largos em sua direção, ela por pouco não tivera tempo de se esconder, e o fez em uma das grandes bancas de revistas estabelecidas nas largas calçadas da avenida. Entrou, pegou uma revista, abriu em qualquer página e começou a olhar, fingindo estar lendo, como fazem os espiões. Não era por nada, podia encontrá-lo mas não sentia-se preparada para conversar com ele. Nas últimas reuniões que tiveram com o advogado, ele veio com a história de reverter o processo do divórcio, quando quase tudo estava pronto, mostrando-se chato e inconveniente. Julia pensara pra sí: “aquilo é a mãe dele que fica se metendo onde não deve, enchendo a cabeça dele.” Àquela altura Júlia disse que não havia chance, e nem ela queria que houvesse; queria mesmo era que tudo acabasse. Ela tinha a impressão e medo de ele estar lhe perseguindo. Ele sabe onde ela trabalha e de repente ele poderia esperá-la na entrada ou saída do escritório para importuná-la. Julia deixou sua colega e confidente Miriam avisada e também compartilhou a preocupação com seus pais. Precauções em uma época que a liberdade e a intimidade são invadidas por fotos, redes, webs, “fake news”, etc.
A Miriam disse: “Júlia você está muito cansada com o divórcio, com um novo relacionamento; são coisas que aconteceram simultaneamente, ainda não deu tempo para tudo isso se sedimentar. Talvez seu ex-marido nem faça o que você está pensando, pode ser sua cabecinha que não para de pensar.”
Júlia ouvira tudo que a amiga dissera e permaneceu calada.

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