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Mostrando postagens de 2018

Empréstimo

Empréstimo Seu Alfredo, aposentado, estava lendo o jornal matinal, devia ser em torno das dez. O telefone fixo começou a tocar: uma, duas três vezes. Ele decidiu levantar-se, ainda de pijamas, na boca um gosto de café recém bebido. Percorreu o corredor até chegar ao escritório, local onde estava o aparelho instalado. Nesse espaço de tempo começou a imaginar quem estaria ligando: alguém da família; aquele tipo de ligação que fica-se repetindo alô e ninguém responde; ou então colocam alguém dizendo que é seu/sua filho/a, desesperado/a, dizendo, com uma voz incrivelmente parecida com a dele/a, que fora roubado/a, mas aí você percebe que não é verdade quando faz algumas perguntas sem respostas confiáveis. Em umas dessas ligações pediu para a sua mulher, em paralelo, pelo celular, ligar para o filho para confirmar; aí descobriu com alívio que o filho estava em casa às onze da noite. Quando chegou ao escritório, atendeu: “alô, alô,” ouviu uma voz distante; não estava ouvindo direito

Peru de Natal

Peru de Natal Talvez o título acima e a prática possam causar algum desconforto aos vegetarianos e aos veganos, de início peço-lhes perdão, entendo e respeito seus estilos de vida; mas ainda sou indiretamente um predador confesso. Assim como fazem os judeus e os muçulmanos, com respeito ao consumo de carne, peço perdão também ao peru; só que eles o fazem em frente ao animal vivo e eu o faço “post mortem”. O que quero dizer é que minha esposa Neide era leitora assídua da revista Claudia, e ainda o é, com menor freqüencia; mas na década de setenta ela comprava a revista mensalmente e a lia com entusiasmo. Nessa mesma década, creio que em 1975(o livro não menciona a data) saiu um livro, do Círculo do Livro, “As melhores Receitas de Claudia”. Nesse livro há uma receita de peru que desde aquela época ela segue. A organização dessas receitas, no livro, coube a Sra. Edith Eisler da editora. É uma receita que agrada a todos nós, filhos e netos. Com os miúdos da ave, cozidos, ela a

O Vendedor de Enciclopédias

O Vendedor de Enciclopédias Havia um vendedor de enciclopédias, em meado dos anos setenta, nos tempos em que eu freqüentava a faculdade de ciências contábeis da Universidade Metropolitana de Guarulhos; era João, não me lembro seu sobrenome há essa distância de quase cinqüenta anos. Pode ser que até o final desta curta história eu me lembre. João tem (ou tinha, porque nunca mais tive o prazer de reencontrá-lo) menos de um metro e setenta de altura, caixa torácica larga, como a de um cantor de ópera; cabelos ralos penteados para cima do crânio, numa tentativa de disfarçar a calvice que se apressou em chegar; tez clara e em torno 40 anos.  (Havia vendedores de livros naquela época os quais vendiam enciclopédias, dicionários mas não em livrarias. Era o caso de um senhor que se postava em frente à Universidade. De acentuado sotaque Português, não concorria com o João; vendia livros da área de direito, administração e economia, a prazo. Lembro-me que ele vendia coleções dos jurista

Cantada de muié

Cantada de muié Deve sê bom sê cantado por muié, Deve dá até tontera, De não pudê ficá de pé; Num dá pra esquecê a vida intera, Deve saí faísca do chão inté, Até tremô de terra; Como se fosse vulcão, Mas num vô reclamá não, Nem dá uma de machão.

Diário de Viagem

Diário de Viagem Período: 26/09 a 10/10/2018 País: Itália (Roma, Pompéia, Nápoles, Costa Amalfitana e Sicília) Guia da empresa de viagem: Carlos (educado, culto, paciente, elegante; bigode estilo Ronaldo Fraga). Anotações tiradas de um caderninho da “Moleco”, feitas sobre os “joelhos” sob o solavanco do ônibus da excursão, sob o sacolejo dos barcos e no cochilo antes de dormir, nos quartos dos hotéis. Dia 27/09 - Roma Quando chegamos ao Aeroporti Fiumicino di Roma, depois de uma longa e cansativa viagem, devido a duração e ao desconforto da classe econômica, enfrentamos filas homéricas, ficamos mais de duas horas na Imigração. A quantidade de atendentes não guardava proporção com o volume de pessoas nas filas. Devido ao atraso, as malas já não estavam mais na esteira correspondente ao voo; procuramos informações no local de reclamações, mas não era o caso de malas perdidas ou desviadas; retiraram as malas da esteira porque ficaram lá girando muito tempo. Havia pesso

Conjuntivite

Conjuntivite O médico oftalmologista, disse: “Sr. Antonio, pode entrar”. Eu dirigi-me rapidamente à sua sala, estirei a mão para cumprimentá-lo mas ele me deu o braço e disse: “conjuntivite.” Achei que ele estivesse com a doença, por isso não me dera a mão para apertá-la. Aí ele me perguntou: “qual o problema, seu Antonio?” Eu disse: “estou com os olhos vermelhos, como se alguns vasos sanguíneos tivessem rompido.” Ele apontou uma cadeira a frente do aparelho onde o paciente coloca o queixo e fica olhando fixo para aquela luzinha. Depois do exame, ele disse: “conjuntivite. Da braba.” Agora sim, era comigo. Ele disse, após sentar-se à sua mesa e pedir-me para sentar-me em uma cadeira à sua frente: “vou receitar um colírio que vai resolver esse problema em mais ou menos cinco dias, e qualquer problema volte a me procurar.” Enquanto escrevia a receita, percebi que ele usava uma caneta-tinteiro, e de vez em quando molhava o bico da mesma em um pote de tinta ali a sua frente, voltava a e

Bate e Volta para Santos

Bate e Volta para Santos                                                      I Os dois bancos, um de frente para o outro pareciam assentos de trem, de forma que as pessoas pudessem conversar olhando nos olhos das outras; apesar de que hoje em dia estariam a olhar para as telas de seus celulares, digitando textos. Mas não estavam em um trem, parecia mais um utilitário adaptado; de qualquer forma também atendia aos que estivessem sentado naqueles bancos, o desejo e a disposição de conversarem. Era um sábado cedo, os dois casais, amigos de muito tempo, estavam sentados nos bancos daquele veículo, em direção ao litoral, em um fim de semana prolongado, cujo feriado caia na segunda feira. Combinaram deixar os carros em casa e irem de carona para Santos, pegar uma praia, passear um pouco, almoçar e voltar final da tarde. É o chamado bate e volta. Não falavam, nem mexiam nos celulares. O homem de um casal e a mulher do outro, esfregavam as mãos, suavam um suor frio, bocas secas,

O Morro

O Morro Ele viu-se de repente sobre um morro, de pouca altura, o vento soprava fortemente, como ventava em “(*) O Morro dos Ventos Uivantes”; o topo sem capim ou qualquer forração, só havia terra plana, só tinha capim e árvores nas encostas que desciam para alcançar a planície; era distante da cidade; aliás, ele nem via sinal da cidade. Caminhou em direção a um lugar que pudesse ter transporte para voltar para casa; ele não sabia a razão de ter chegado ali. Viu alguns adolescentes, que aparentemente voltavam da escola,   carregavam mochilas presas aos ombros, perguntou a eles onde teria um ponto de ônibus. Os adolescentes o levaram para um local que era um labirinto, com paredes estreitas de pedra, daquele tipo de labirinto que nos causa aflição, asfixia e desespero para encontrarmos a saída; dando a impressão que nunca mais iríamos sair; passando pelo labirinto ele estaria no caminho do ponto de ônibus. Mas ele se perdera lá dentro e não vira mais os adolescentes. Após sair do

A Casa da Moóca

A Casa da Moóca O design e a arquitetura da casa eram dos anos quarenta, talvez fora planejada e construída por um capomastro* , na Moóca, bairro central da cidade de São Paulo, onde boa parte dos imigrantes italianos moravam. A casa tinha fortes linhas italianas: nas janelas venezianas pintadas de verde-escuro, molduradas de cimento e pintadas de branco; nas portas altas ; na parte externa pintada com “ terracotta orange”; detalhes mantidos mesmo depois de algumas reformas ao longo dos anos. Essa casa que servira de residência de várias gerações da mesma família, palpitava-se que testemunhara nascimentos, casamentos, amores, traições, desavenças e mortes. Olhada de frente, um muro alto, metade de tijolos e colunas revestidos de argamassa e a outra metade, um gradil de ferro trabalhado, com grades cheias de detalhes. O portão de duas folhas, também de ferro, seguia o mesmo formato do gradil do muro. Quando passava-se o portão, atravessava-se o jardim por um caminho de pedras